Thomas De La Rue & Co e a operação Bernhard


Nos Arredores de Leeds, no norte da Inglaterra, existe um grande edifício de tijolos que é guardado tão rigorosamente como qualquer instalação nuclear ou de teleguiados. Nenhuma pessoa ou embrulho entra ou sai dali sem meticuloso exame. Há guardas por toda a parte. Caminhões que parecem veículos comerciais comuns saem periodicamente dos seus portões. Não há blindagem nem guardas armados nos caminhões. Mas cada um deles raramente fica longe das vistas dos carros de polícia que também não chamam a atenção e que patrulham o seu caminho. 

A carga dos caminhões consiste em pesadas caixas revestidas de metal, cujo destino pode ser Berna, Aqaba, Caracas ou Bancoc. Cada caixa leva uma fortuna, freqüentemente vultosa - talvez em francos suíços, em dinares da Jordânia, em bolívares da Venezuela ou em ticais da Tailândia. Todos eles acabaram de ser impressos por Thomas De La Rue & Co., um dos maiores impressores de papel-moeda do mundo. Dos portões de De La Rue saem semanalmente cerca de 20 milhões de notas para governos do mundo inteiro. 


Uma vez que a divisão de notas da firma, desenha, grava e imprime o dinheiro de 92 países, certamente os seus desenhistas devem ser versáteis de tal forma a satisfazer o gosto variável dos tesouros e dos bancos nacionais. 
Os suíços, por exemplo, apreciam um desenho sóbrio, simples, de preferência moderno, para as suas notas. O Irã quer um desenho extremamente complicado, que lembra um tapete persa. A Nova Zelândia pede motivos maoris. O Camboja se especializa em dançarinas. Muitos países latino-americanos preferem notas que mostrem os retratos dos presidentes, as armas nacionais e os edifícios públicos, tais como as cédulas brasileiras impressas pela prestigiosa companhia inglesa. 

Quem não se recorda da primeira Cédula emitida pelo Banco Central da República do Brasil, no valor de 5.000 cruzeiros, séries 1701 a 2200 aproveitadas do Tesouro Nacional?

Figura: Anverso da cédula de 5.000 cruzeiros, impressa por Thomas de La Rue & Company, com as microchancelas do primeiro Presidente do Banco Central – Dênio Nogueira e do Ministro da Fazenda, Octávio Gouvêa de Bulhões.
O vídeo a seguir, muito interessante, é um pequeno filme sobre a impressão de papel-moeda. Mostra, logo no início, uma cédula brasileira, impressa pela De La Rue. O vídeo trata do processo industrial de fabricação de papel-moeda, desde parte da concepção da cédula até uma eventual destruição por falha na impressão. No vídeo não é mencionado o nome da empresa, apenas que se trata de uma impressora de papéis de segurança (Security Printers) de Londres. Logo no início da projeção, vê-se primeiramente um funcionário da empresa em sua rotina, diante de sua mesa de trabalho (ateliê de concepção de cédulas bancárias) com material artístico apropriado, tomando medidas de uma “cédula” (prova em papel cartão) e fazendo alguns retoques a pincel, diretamente sobre o cartão. É fácil identificar que trata-se de uma cédula de 20 cruzeiros da 2ª Estampa do Tesouro Nacional – Brasil (no caso em questão, a prova desta cédula), que foi impressa pela Thomas de La Rue de Londres, e que já vinha circulando desde 1950. Esta prova que aparece na imagem seria a de 1960 ou anterior, haja vista ser possível observar a anotação “valor recebido” abaixo do medalhão que traz a efígie do Marechal Deodoro da Fonseca. Se a data da produção do vídeo estiver exata, pode-se dizer, com certeza, que se trata da cédula de 20 cruzeiros de 1960, emitida em 1962, desta mesma estampa, com o indicativo “valor legal” ao invés de “valor recebido”.


Depois que o desenho colorido de uma nova nota é submetido à apreciação de um governo, e aprovado, passa às mãos dos gravadores. Há apenas uns 100 gravadores no mundo com perícia suficiente para fazer chapas de notas de superior qualidade. Desse total, 20 (vinte) se encontram com De La Rue. Artífices meticulosos, eles são de temperamento muito semelhante - calmos, agradáveis e dotados de infinita paciência. Dedicam-se à tarefa de reproduzir um desenho no aço com toda a exatidão; não podem ser apressados nem perturbados.


As mesas de trabalho na grande sala de gravação, agradavelmente decorada, são bem separadas umas das outras, e não é raro observar um gravador a olhar vagamente por uma janela ou a andar de um lado para outro de cachimbo aceso, talvez pensando na melhor maneira de produzir o efeito da vela enfunada de uma embarcação ou as linhas de uma esplendorosa montanha.
Os desenhos complexos não têm valor apenas estético; ajudam a confundir os falsários. Assim também o faz o torno geométrico, máquina de cortar, extremamente complexa, que grava numa chapa os complicados círculos, volutas e laços em geral usados nas margens das notas. Não há mão humana capaz de produzir sequer um fac-símile razoável. Além disso, um torno geométrico não pode copiar o trabalho feito por outro, salvo se quem o fizer funcionar tiver a fórmula do original e ajustar de acordo com ela o seu labirinto de engrenagens. Esses tornos custam em torno de 16.000 libras, são cuidadosamente guardados, e só são vendidos aos impressores de boa reputação.


Há duas outras características numa nota bem feita, que nem mesmo um falsário com o melhor aparelho de reprodução fotográfica pode imitar: a tinta e o papel. As tintas inimitáveis da Companhia De La Rue, preparadas segundo fórmulas secretas, são famosas há muitos decênios. Só três firmas no mundo ocidental fabricam o papel peculiarmente duro e inteiramente feito de trapos com a consistência firme de uma autêntica cédula. Essas firmas são: Crane, que é a fornecedora do Tesouro dos Estados Unidos e que recentemente fabricou a cédula brasileira de R$ 2,00; Portals, na Inglaterra, que fornece o papel à De La Rue, e o Office Français des Papiers Surfins et Fiduciaires, de Paris, que abastece o Banco da França.
Todas as folhas fabricadas são contadas e escrituradas até ao último centímetro quadrado. Muitos são os governos que acrescentam ao papel outra característica de segurança, como a filigrana. Ninguém descobriu ainda um meio realmente satisfatório de falsificar uma filigrana. Apesar disso, a eterna batalha entre o impressor e o falsário continua.

A companhia conta com alguns artifícios, a fim de dificultar a ação de falsários, difíceis de superar. Um deles é o “fio de segurança”, um fino fio de matéria plástica que se insere no papel por ocasião da fabricação. Os moedeiros falsos imitam esse fio imprimindo em lugar dele uma linha estreita. Mas é fácil identificar a nota falsa, bastando para isso passar a unha sobre ela. Por outro lado, com o fio de segurança, é possível agora para os bancos examinarem com rapidez centenas de notas por meio de uma máquina que automaticamente identifica as falsas. A precisão cada vez maior dos métodos de reprodução fotográfica tem dado muitas dores de cabeça aos homens da De La Rue. Uma das principais providências que tomaram em sua defesa foi o emprego de uma série de delicados tons claros que as melhores máquinas de fotografia a cores não podem reproduzir exatamente, mas que podem ser distinguidos até pela vista de um leigo. Entretanto, a maior contribuição da Companhia De La Rue para a fabricação de notas consiste nas suas incomparáveis máquinas de impressão. No Banco da Inglaterra, algumas notas inglesas são impressas em máquinas da De La Rue e há dois anos nove dessas máquinas foram instaladas na Oficina de Gravura e Impressão de Washington, nos Estados Unidos. Até há pouco tempo era necessário umedecer o papel das notas antes da impressão, em virtude da sua extraordinária dureza. Isso freqüentemente apresentava inconvenientes: quando o papel impresso secava, era freqüente as linhas saírem ligeiramente deformadas.

Mas as prensas da De La Rue estampam com tal pressão e exatidão que já não é mais necessário umedecer o papel, e todas as folhas saem absolutamente perfeitas à razão de 2.500 por hora. Isso é de vital importância para o Tesouro dos Estados Unidos, pelo simples fato de que o país tradicionalmente não emprega filigranas nem tintas especiais em suas cédulas, dependendo da absoluta precisão e clareza da impressão.

A Casa De La Rue foi fundada em 1813 por um impressor de múltiplas aptidões e imensamente engenhoso, Thomas De La Rue, que se especializou na impressão de papel de cartas em relevo e em cartas de jogar. Quando os selos postais começaram a ser usados na Inglaterra, dedicou-se a eles e durante 30 anos teve o contrato exclusivo da impressão de todos os selos ingleses. Começaram então a chegar numerosas encomendas de selos de outros países.
No começo do século, a enorme expansão mundial da indústria e do comércio produziu uma repentina procura do papel-moeda para substituir o ouro e a prata, mais difíceis de manusear. Alguns países tentaram imprimir o seu dinheiro e se viram desastrosamente às voltas com os falsários. Em toda a parte havia muito poucas pessoas com a aptidão técnico - artística, o conhecimento mecânico e as máquinas complicadas e caras necessárias para fazer notas relativamente garantidas contra os moedeiros falsos. Quando, em 1901, o Governo da Tailândia pediu ao Banco da Inglaterra que lhe imprimisse o dinheiro, o Banco se escusou, mas sugeriu De La Rue. E foi assim que começou a grande indústria de notas.

Nota: Thomas de la Rue (24 de Março 1793 - 7 de Junho 1866), sétimo de nove filhos de Eleazar e Rachel de la Rue, nasceu em 1793, numa pequena aldeia em Guernsey, chamada Le Bourg. Aos dez anos de idade, foi aprendiz de seu cunhado Joseph Antoine Chevalier, um mestre gráfico em St Peter Port, que produziu a Gazette de l’Île de Guernsey, o primeiro jornal impresso na ilha. Durante este período de intenso aprendizado, Thomas adquiriu um conhecimento profundo das técnicas de impressão. Em 1818 mudou-se para Londres com sua família, onde se estabeleceu inicialmente como fabricante de chapéus Leghorn de palha, mas logo diversificou-se para a encadernação de livros e a gravação em couro, para logo em seguida dedicar-se à fabricação de papel.

Um dos primeiros baralhos produzidos pela empresa
Por volta de 1828, seus interesses se voltaram para a produção de baralhos, empresa onde colocou em prática tudo o que aprendera. Até aquela época, os baralhos eram desenhados e coloridos com aquarela, ou impressos a uma só cor e depois pintados a mão. Foi Thomas de la Rue o pai das cartas de jogo modernas. Durante anos fez baralhos para os membros da Família Real Britânica, assim coma para Reis, Rainhas e Chefes de Estado da época. De la Rue introduziu a impressão de prensa de cartas e outras “melhorias” na produção de cartas de baralho e obteve a patente em 1831. Produziu suas primeiras cartas de baralho em 1832 e, com o passar dos anos, passou a ser reconhecido como o inventor do inglês moderno. cartão.


SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E A OPERAÇÃO BERNHARD

Talvez o mais duro golpe já sofrido pelo mundo da impressão de notas tenha sido - coisa que pode tornar a acontecer a falsificação da moeda de um governo por outro durante a Segunda Guerra Mundial. Os nazistas organizaram um plano para descontrolar o sistema monetário britânico por meio da introdução furtiva de notas de cinco libras no Reino Unido e espalhando-as pelo mundo. As falsificações eram tão boas que enganaram até os peritos.

No verão de 1942, os alemães empreenderam a Operação Bernhard, em que um grupo qualificado de prisioneiros judeus falsificadores se reuniu no campo de concentração de Sachsenhausen para falsificar notas do banco britânico, ou seja, libras. Sob muita pressão, fizeram peças de arte! Notas de £5, 10, 20 e 50 são consideradas as melhores falsificações do dinheiro britânico já feitos, e foram passadas ​​com sucesso por vários países, e mesmo até circuladas na Inglaterra. Essas notas passaram até em testes no Banco da Inglaterra.



Os nazistas tentaram vencer a Grã-Bretanha com a força aérea, mas os ingleses tinham uma nova tecnologia, o radar, que evitou a vitória alemã. Os alemães afundaram navios mercantes, para evitar o abastecimento da Inglaterra, seus aviões bombardearam indústrias e cidades inglesas, para diminuir a produção britânica e enfraquecê-la. Mas a Grã-Bretanha resistiu. Então, os nazistas tiveram de pensar em outras táticas para destruir a Grã-Bretanha, e uma delas era inusitada, pois não envolvia ataques, confrontos militares, bombardeios ou a criação de novas armas.

Em 1942, um grupo de 142 falsificadores judeus e poloneses, companheiros no campo de concentração Sachsenhausen, em Oranienburg, a 22 milhas ao norte de Berlim, no bloco 18 e 19, e alguns vindos de Auschwitz-Birkenau, foram reunidos pelo major Bernhard Krüger para dominar as técnicas de falsificação de libras esterlinas e passaportes. O objetivo era “quebrar” a economia britânica, lançando no mercado milhares de libras falsificadas. Foi em 1942 que Heinrich Himmler (Reichsführer das Schutzstaffel, Comandante Militar da SS) encarregou o major (Sturmbannführer) SS Friederich Walter Bernhard Krüger, para executar o plano. Como Krüger teve dificuldades em obter técnicos alemães, foram selecionados judeus especialistas no tema com habilidades específicas: tipógrafos, ilustradores, pintores, retocadores, químicos, gravadores, impressores, encadernadores, trabalhadores bancários, falsificadores, etc, dentre esses, Salomon Smolianoff (1899-1976) e Adolf Burger (1917-2016). Esses prisioneiros eram classificados como “trabalhadores altamente essenciais” e alguns privilégios lhes eram concedidos como a segurança de sobrevivência e um tratamento melhor do que os demais prisioneiros.


Inicialmente, as notas seriam lançadas por aviões sob solo britânico, onde se esperava que os cidadãos recolhessem o dinheiro e o gastassem, inflacionando a economia do país. Mas, devido ao baixo número de aviões, optaram por um plano mais discreto. O dinheiro seria distribuído pelas embaixadas e consulados para compra de materiais e bens em países neutros, assim como o pagamento de seus espiões e agentes. Os primeiros “produtos” foram repartidos entre as embaixadas e consulados alemães na Turquia, Espanha, Suécia e Suíça. No final de 1943, eram impressos aproximadamente um milhão de notas por mês. Grande parte desse dinheiro foi transferida para um hotel perto de Meran, na província de Trentino-Alto, na Itália. Acredita-se que o resgate do ditador italiano Benito Mussolini foi pago com esse dinheiro, mas não há provas. Foi impresso um total de 8.965.080 cédulas que somam um valor de £134.610.810. No final da guerra havia, também, prensas para impressão de francos e dólares.

Entre 1942 a 1945, foram impressas mais libras do que as reservas do Banco da Inglaterra possuíam em seus cofres, o equivalente a 15% de todo dinheiro original em circulação. Após a evacuação de Sachsenhausen, no início de 1945, a unidade foi movida para o campo de concentração de Mauthausen-Gusen na Áustria, depois para a série de túneis de Redl-Zipf e finalmente para o campo de concentração de Ebensee. Em abril de 1945, os moradores próximos do lago Toplitz (Toplitzsee, em alemão) foram acordados às 4 horas da manhã por soldados alemães e obrigados a deixarem as pressas suas casas, e forçados a retirar de caminhões, cinquenta caixas de madeira pesadas, colocá-las em suas carroças e transportá-las até a margem do lago, tudo sob a mira de metralhadoras. Os alemães tinham tentado mover tal carga sozinhos, mas os veículos pesados ficaram presos na lama, forçando-os a confiar nas carroças dos moradores, mas que também ficaram presas e então usaram os moradores para transportar nos braços, tais caixas. Em maio de 1945, uma ordem foi expedida para a transferência do grupo para o campo de concentração de Ebensee, onde todos deveriam ser executados na chegada. Havia apenas um caminhão disponível para o transporte e por isso, foram necessárias três viagens. Na terceira viagem, o caminhão quebrou e os prisioneiros tiveram que caminhar até Ebensee, chegando no dia 4 de maio. Os guardas fugiram, após uma revolta dos prisioneiros.

Os falsificadores se misturaram com os outros prisioneiros e, graças a isso, não foram executados. Em 05 de maio de 1945, os prisioneiros do campo de Ebensee foram libertados pelos soldados americanos. Após alguns anos, em julho de 1959, uma equipe financiada pela revista alemã Der Stern, conseguiu recuperar grande número de caixas de madeira com 72 milhões de libras em notas falsas do fundo do lago, e todas em excelente estado de conservação, que chegaram a serem usadas no mercado, a tal ponto que o Banco da Inglaterra retirou de circulação todas as notas maiores que £5 para fazer novas emissões. Foi apenas em 1960 que a nota de £10 foi reiterada, £20 em 1970 e £50 em 1980.
Figura: Os falsários, no dia da libertação
Figura: Mergulhador resgatando caixas com libras falsas, no lago Toplitz
Figura: O lago Toplitz na Áustria
Também encontraram, uma prensa de impressão, equipamento de laboratório, armas e controles de foguetes. Em 1983, Hans Fricke, um biólogo alemão, explorou o lago e os terrenos adjacentes e encontrou também caixas de dinheiro falso, munição, armas, peças de foguetes e partes de um avião explodido. Em novembro de 2000, a rede de televisão CBS, juntamente com a Oceaneering Technologies, a mesma empresa de salvamento submarino que descobriu o Titanic e o Simon Wiesenthal Center, tentaram recuperar documentos relativos a bens roubados pelo regime nazista. Em vez disso, eles encontraram evidências e equipamentos da Operação Bernhard e uma caixa contendo "centenas de tampas de garrafas de cerveja" que moradores jogaram no lago de forma irônica, dias antes da exploração da equipe.

Em outubro de 2009, o governo austríaco, a fim de proteger a integridade do meio ambiente, anunciou planos para proibir novas pesquisas na área por 99 anos. Houve uma parte do dinheiro que foi usada pelos judeus para compra de material bélico para o iniciante Exército Israelense e para ajudar no exílio para a Palestina de muitos judeus. A Operação Bernhard é considerada a maior falsificação de dinheiro já ocorrida no mundo. O filme "Os Falsários", retrata com fidelidade esse episódio da segunda guerra.