O meio circulante e a higiene no Brasil do séc. XIX


"— Menino, vai lavar essas mãos, antes de comer...você pegou em dinheiro e ainda fica esfergando os olhos...vai pegar uma conjuntivite...dinheiro é sujo, passa na mão de um monte de gente"

Garanto que muitos já ouviram algo parecido quando éramos crianças. Nossas mães e avós nos advertiam dos males, as doenças que poderíamos contrair, caso não lavássemos bem as mãos quando entrávamos em casa, principalmente depois de manusear dinheiro, algo tido como anti-higiênico por ter passado pelas mãos de diversas pessoas que assoam seus narizes, vão ao banheiro e não lavam as mãos, transferindo às moedas e cédulas, coliformes fecais e milhões de bactérias.

Mesmo que alguns autores tenham concluído que o contato habitual com numerários, no trabalho e no atendimento ao público externo, não aumentem significativamente o risco relativo de contaminação por agentes patógenos causadores de doenças infectocontagiosas incapacitantes para o trabalho de origem gastrointestinal, respiratória ou oftalmológica, é óbvio que a sensação é bastante desagradável ao imagniar que aquela nota ou moeda em nosso poder, foi manuseada por alguém que não lavou as mãos depois de uma crise de diarréia. Imagine, por exemplo, a quantidade de coliformes fecais que o sujeito deixou “grudados” na nota ou moeda que agora você tem em mãos...é desgostoso. 

Vamos avaliar, por exemplo, o período relativo à circulação de uma das moedas mais fascinantes da nossa numismática; as moedas de 960 Réis, conhecidos pela maioria com o nome de “patacões”. Essas moedas circularam, predominantamente entre os anos 1808 e 1840 (apesar da última data cunhada ser a de 1834, os patacões eram aceitos nos anos sucessivos, dando lugar, aos poucos, às moedas de prata do segundo sistema de D. Pedro II, cunhadas a partir dessa data) , ou seja, a maior parte do século XIX. No século XIX, circulavam também as moedas do segundo e do terceiro sistema, as moedas de cobre com Carimbo Geral e as notas e bilhetes do Banco do Brasil e outros bancos comerciais e caixas matrizes.


COM ERA A HIGIENE NESSA ÉPOCA

A palavra “higiene” não constava nos dicionários do século XIX, momento em que muitos viajantes estrangeiros estiveram no Brasil. Nem por isso o tema lhes passou despercebido. Segundo a inglesa Maria Graham, as casas dos brasileiros eram “repugnantemente sujas”. 
Ainda piores eram as cozinhas, fossem de pobres ou de ricos: “Um compartimento imundo, com chão lamacento, desnivelado, cheio de poças d’água, onde em lugares diversos armam fogões, formados por três pedras redondas onde pousam as panelas de barro em que cozinham as carnes”, horrorizou-se John Mawe.

Não raro, no Rio de Janeiro, em Salvador ou em qualquer outro núcleo urbano brasileiro colonial, um pedestre era “abatido” por excrementos humanos voadores enquanto seguia pela rua. Não havia esgoto, e o hábito era jogar o resíduo pela janela mesmo. As ruas, claro, não ficavam exatamente limpas, e se tornavam bastante insalubres. Não tendo o país nenhuma faculdade de medicina, doenças contagiosas chegavam e ficavam sem enfrentar grande resistência. Mesmo em 1799, já muito perto do fim da colônia e da chegada da família real portuguesa em fuga para o Brasil, o país, com cerca de 3 milhões de habitantes, não tinha mais de 12 médicos formados, todos importados.


Comer com as mãos, arrotar, defecar ou urinar publicamente são hábitos banidos de nosso convívio (pelo menos, assim deveria aser). Porém, as práticas em torno das necessidades fisiológicas, assim como o uso da água e da indumentária, percorreram uma longa estrada antes de serem adestradas. E a educação do corpo teve que se dobrar às fórmulas de contenção, contrariando o desejo e os apelos da “natureza”. “Lavado” significava “limpo com água ou outro licor”.


Raramente o interior das habitações era limpo. Quando muito, era varrido com uma vassoura de bambu. Deitar água no chão, nem pensar. As paredes, apenas caiadas, tornavam-se amarelas e cheias de manchas de bolor. A fim de tornar os quartos toleráveis e deles expulsar o intenso mau cheiro, costumava-se queimar plantas odoríferas, principalmente as folhas e cascas das árvores de eucalipto. Os odores derivados da queima dessas plantas e ervas, também mantinham afastados os “atacantes invisíveis”: mosquitos, baratas e outras imundícies. 
No Colégio Jesuíta do Maranhão, os reverendos padres preferiram espalhar vasos com “cheiros”, ou seja, com ervas aromáticas, com o mesmo objetivo, nos conta J. P. Bettendorf. 


TIGREIROS e o Decreto "ÁGUA VAI"

Os penicos estavam em toda parte, e seu conteúdo, sempre fresco, era jogado nas ruas e praias pelos “tigreiros”. Acostumado aos “gabinetes à inglesa”, o comerciante inglês John Luccock queixava-se que entre as piores inconveniências domésticas havia certa “tina destinada a receber todas as imundícies e refugos da casa, que, em alguns casos, é levada e esvaziada diariamente, noutros, somente uma vez por semana, de acordo com o número de escravos, seu asseio relativo e pontualidade, porém sempre carregado, já sobremodo insuportável”.

A cidade instaurada no Brasil, desde os tempos pré-coloniais, seguia o modelo trazido pelo colonizador português, de origem latina e árabe. O Brasil ‘importou’ seus problemas de salubridade da Metrópole. Em Lisboa, os dejetos e lixo ficavam nas ruas à espera das chuvas; um decreto impunha gritar ‘água vai’ quando se atirassem excrementos. No Brasil, a situação era agravada porque escravos mortos eram atirados nos monturos de lixo e as chuvas torrenciais enchiam as ruas de lama. Nas praias, rios e lagoas, dejetos eram depositados pelos tigreiros ou tigres — escravos que tinham a pele listrada pela mistura aquosa de dejetos e excrementos que escorriam dos cestos de palha carregados às costas. Até então, os dejetos eram guardados nas residências, em barris. A remoção dos barris cheios se fazia, normalmente à noite, quando escravos, carregando os barris à cabeça, cruzavam a cidade até terrenos baldios ou o mar, onde a imundície era despejada.

As grandes cidades brasileiras não eram exatamente localidades agradáveis no século XIX. Sujo, nojento e enlameado, o cenário urbano se compunha de carniças, bichos mortos, alimentos podres, um mau cheiro tremendo de urina e fezes e outras imundícies abandonadas perto das pontes e nas praias. Era comum as pessoas urinarem ou defecarem nas ruas, como se pode constatar da gravura de Jean Baptiste Debret, à esquerda, mostrando uma cena quotidiana das ruas do Rio de Janeiro, em que um escravo protege um nobre do sol causticante, enquanto urina na rua. 

Figura: Tigres (ou tigreiros) eram os escravos encarregados de recolher e jogar diariamente nas praias ou nos rios os dejetos domésticos. Gravura, A Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, 1861

O Recife, assim como o Rio de Janeiro e Salvador, sofria com sérios problemas provocados pelo inchaço populacional. Numa época em que o sistema de esgotos ainda não existia, o que fazer com os dejetos e águas sujas – ou “águas servidas” – produzidos diariamente pela população? Nas cercanias da cidade e em locais onde existiam grandes terrenos, era fácil abrir buracos para servir de fossas, mas também se atirava de tudo diretamente nos rios e mangues. No apertado centro, porém, era mais complicado livrar-se dos dejetos.

Nas ruas e nos becos estreitos, os maus cheiros se confundiam. Nas praças, vísceras de animais e restos de vegetais estragados compunham um ambiente insalubre. Dentro das casas, cozinhas sem ventilação tornavam o ar viciado, com exalações pútridas de matérias orgânicas em decomposição. Nos quartos, poeira e mofo se misturavam ao cheiro dos penicos.

Figura: 10.000 Réis de ouro, datado 1889. Circulou durante praticamente toda segunda metade do século XIX.

Todo dia de manhã, eles eram esvaziados em barris de madeira que ficavam embaixo das escadas ou em um canto mais recolhido da casa. Quando o tonel já estava quase transbordando, recorria-se ao “préstimo” do escravo! Era sobre as cabeças deles que o peso das barricas era conduzido para ser despejado na “beira” das marés. Em seguida, os carregadores retornavam com os recipientes vazios para receber nova carga.

Esses barris eram chamados de “tigres” e os seus condutores, de “tigreiros”. Talvez o nome fosse uma alusão à coragem dos carregadores ou, quem sabe, à imagem desagradável das barricas que, ao transbordar, espalhavam fezes nos corpos dos escravos e dos negros de ganho, numa combinação que lembrava a pelagem dos tigres. Existem versões que afirmam que o apelido foi dado porque, ao avistar os negros levando barris de dejetos, os transeuntes, com medo de ficarem sujos, afastavam-se rapidamente, como se fugissem de um animal selvagem.

Quando um “tigre” passava, as pessoas tapavam o nariz com lenços, viravam o rosto, se encolhiam. De longe, os “tigreiros” vinham alertando os moradores com seu bordão “Abra o olho! Abra o olho!” Os passantes se esquivavam, com medo de que um simples esbarrão acarretasse um banho asqueroso.

O tratamento dado aos dejetos líquidos gerava freqüentes queixas dos moradores, porque outro hábito comum na cidade era o despejo dos penicos cheios do alto dos sobrados, sem perdoar o caminhante que passava distraído pela rua, a qualquer hora do dia ou da noite. Os algozes ficavam à espreita por trás das janelas dos sobrados, esperando algum desafeto passar para “honrá-lo” com excrementos atirados pela janela.

Por volta de 1867, a cidade de Recife tinha um projeto dos esgotos que ainda não havia saído completamente do papel, pois o número de latrinas era insuficiente e a canalização dos esgotos não chegara a boa parte das casas. Os moradores não utilizavam os vasos corretamente, lançando panos, ossos, espinhas de peixe e outros resíduos de cozinha, o que obstruía o sistema e causava prejuízos. O sistema de esgotos funcionou precariamente durante a segunda metade do século XIX, contribuindo para a proliferação de epidemias, principalmente as de tifo e disenteria

Em 1877 seria fundada a Companhia Cantareira, com o objetivo de implantar e manter os serviços de água e esgoto da Cidade de São Paulo.

Figura: A preocupação com o abastecimento e a qualidade das águas servidas à população levou a criação da Companhia Cantareira de Águas e Esgotos em 1877. Um dos primeiros trabalhos realizados pela empresa foi o de aumentar o volume de águas que chegavam a Represa do Engordador, principal manancial de abastecimento da cidade na época, através de adutoras instaladas a partir de fontes de águas na Serra da Cantareira (vide foto), permitindo a regularização do fornecimento de água nos chafarizes e bicas públicas ao longo de todo o ano.

RECIPIENTES COM IMUNDÍCIES AO AR LIVRE

Até encher, tais perfumadas tinas ficavam isoladas no compartimento chamado “secreta”. Quando chovia, eram esvaziadas nas ruas. O monturo secava sob o sol. E varredores de rua não existiam. Os “esterquilínios” – como os chamou o bem-humorado Ernani da Silva Bruno – eram facilmente reconhecidos: cobriam-se de uma espécie de cicuta, planta popular conhecida como erva-salsa.

Jean-Baptiste Debret deixou, também, suas impressões sobre os “potes”: “De barro cozido e de forma oblonga, tem mais o caráter indígena. É em geral de três palmos de altura. Suas funções vergonhosas fazem com que esteja sempre escondido num canto do jardim ou do pequeno pátio contíguo à casa, colocado atrás de uma cerca de trepadeiras ou simplesmente escondido por duas ou três taboas apoiadas ao muro”. Nas casas mais ricas, ele se dissimula sob um assento de madeira móvel. E, nesse esconderijo, aguarda a hora da ave-maria para, molemente, balançando à cabeça do negro encarregado desse serviço, ser esvaziado numa praia. Antes da partida é previamente coroado por uma pequena tábua ou uma enorme folha de couve, tampa improvisada que se supõe suficiente para evitar o mau cheiro exalado durante o trajeto”.

Figura: Casa de Cômodos no Morro de Santo Antônio, em 1916. Rio de Janeiro, RJ

Os sobrados costumavam oferecer um para os pais e camarinhas apertadas para as moças. As janelas pouco se abriam, e não se expunham ao sol as camas úmidas de suor. Na alcova havia mosquiteiro, colchão rijo, travesseiros redondos e “excelentes lençóis”. Sinal de que, apesar da sujeira, a roupa branca era valorizada. Quanto aos habitantes, a maioria deles deambulava pelas ruas vestida com “casacas pretas, velhas e coçadas”. As calças, nos joelhos eram atadas com fivelas de brilhantes-fantasia, as meias eram de algodão nacional, e a cabeça era coberta com “uma peruca empoada sobre que punham um enorme chapéu armado já sebento, geralmente ornado de um tope”. O número de pessoas de aparência respeitável, segundo Luccok, era diminuto.


Figura: Cédula de 500.000 Réis, do Thesouro Nacional e que circulou entre 1911 e 1949. Anverso: Preto sobre policromia, em litografia e calcografia. No centro, medalhão oval, sustentado por dois Querubins, com efígie de mulher de perfil, encimando o valor por extenso “QUINHENTOS MIL REIS VALOR RECEBIDO”, tendo à esquerda e à direita o valor nominal “500” dentro de moldura estilizada; abaixo do valor o noem do fabricante American Bank Note Company New York. Números de série e estampa e número de ordem em vermelho. Acima, o dístico “REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL”. Compromisso fiduciário de resgate da cédula “NO THESOURO NACIONAL SE PAGARÁ AO PORTADOR DESTA A QUANTIA DE”. Moldura com o valor nominal 500 nos quatro ângulos. Reverso: Verde, em calcografia, sobre fundo marajoara. REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, valor nominal e nome do fabricante American Bank Note Company New York.

ROUPAS E TALHERES

Nas ruas e durante o convívio social, s homens enfiavam-se em tricórnios e grudavam fivelas aos sapatos. Mas em casa mostravam-se “com barba de vários dias e os cabelos pretos em franco desalinho, embora besuntados de gordura e sem roupa alguma sobre sua camisa de algodão. É verdade que esse traje era bem-feito, ornamentado com trabalhos de agulha, especialmente sobre o peito; mas frequentemente eram usados de peito aberto e com as mangas arregaçadas até os ombros”. Curtas, as calças deixavam as pernas nuas e “os pés metidos em tamancas. Nada disso é lá muito correto”, ponderavam alguns. O hábito de estar semi-vestido era também observado na hora das refeições: tiravam sapatos, meias e outras “peças que o calor tornasse opressivas, guardando apenas o traje que a decência requer”.

Garfos e facas começavam a ser usados, embora fossem de modelo antigo, pequeno e desaparelhado: “Comem muito e com grande avidez e, apesar de embebidos em sua tarefa, ainda acham tempo para fazer grande bulha. A altura da mesa faz com que o prato chegue ao nível do queixo; cada qual espalha seus cotovelos ao redor e, colocando o pulso junto à beirada do prato, faz com que por meio de um movimento hábil o conteúdo todo se lhe despeje na boca. Por outros motivos além deste, não há grande limpeza nem boas maneiras durante a refeição; os pratos não são trocados. Por outro lado, os dedos são usados com tanta frequência quanto o próprio garfo.”



MAUS MODOS

"Considera-se como prova incontestável de amizade alguém comer do prato do seu vizinho antes do final da refeição, todos se tornam barulhentos, exagera-se a gesticulação e despedem punhadas no ar, de faca ou garfo, de tal maneira que um estrangeiro pasma que olhos, narizes e faces escapem ilesos”, registrou um estrangeiro observador, para concluir mais à frente: “É de observação vulgar que os hábitos pouco limpos costumam seguir de perto a ignorância, poucos vocábulos foram tão empregados quanto sujeira, imundície e expressões sinônimas, mas não é possível fazer-se de outro modo se quisermos de fato representar a situação real e geral do país e de seus habitantes”.

Figura: Gravura de uma Tabacaria, na primeira metade do século XIX, no Rio de Janeiro (Jean-Baptiste Debret)

Debret concordaria, pois ficou chocado ao constatar que pequenos comerciantes ou homens abastados comiam “com os cotovelos fincados à mesa, enquanto sua mulher, com o prato sobre os joelhos, sentada em sua marquesa com as pernas cruzadas, à moda oriental, comia com as mãos, bem como seus filhos ainda pequenos, que, deitados sobre a barriga ou de cócoras nas esteiras, se enlambuzavam à vontade com “a pasta comida nas mãos”! Guardanapos? Coisa rara, mesmo na casa do governador. Em jantar que lhe foi oferecido, Nicolas de La Caille ironizou: “Na ocasião, deram-nos uns guardanapos quadrados, pequenos e sujos. E esse senhor gabava-se de ser muito rico e especialista na arte de bem-viver”.


FORTE ODOR

Já a sensibilidade olfativa dos colonos estava longe daquela que já se instalara na Europa, junto com a preocupação de “oxigenar os ares” e de banir definitivamente o mau cheiro. Tal movimento suscitava a intolerância em relação aos odores do corpo que entre nós ainda eram plenamente admitidos. Teóricos já advertiam para os riscos de a gordura tapar os poros, retendo “humores” maléficos e “imundícies”, das quais a pele já estava carregada. A película nauseabunda, que os antigos acreditavam funcionar como um verniz protetor contra doenças, na verdade bloqueava as trocas “aéreas” necessárias ao organismo. Essa mudança provocou uma passagem da natureza ao artifício. Os perfumes que remetiam aos odores animais – âmbar, almíscar – saíram de moda por sua violência. Antes, as mulheres os utilizavam não para mascarar seu cheiro, mas para sublinhá-lo. Havia nele um papel sexual que acentuava a ligação entre as partes íntimas e o odor.

Na Europa “civilizada”, a emergência de uma nova forma de pudor ameaçava essa tradição, substituindo-a por exalações delicadas à base de lavanda e rosas. O bidê foi então introduzido na França, tornando-se o auxiliar do prazer. As abluções femininas se revestiam de erotismo. Os talcos perfumados e outros pós, à base de íris, flor de laranjeira e canela, cobriam as partes íntimas. Um simples perfume aguçava a consciência de si, aumentando o espaço entre o próprio cheiro e o dos outros: multidão fedorenta. O odor forte, considerado um arcaísmo, se tornou coisa de roceiras e prostitutas velhas.

Entre nós, a conduta no âmbito da higiene íntima feminina (de difícil pesquisa histórica), foi brevemente abordado pelo poeta baiano Gregório de Matos. No final do século XVII, ele escreveu sobre a carga erótica do “cheiro de mulher”. Sim, cheiros íntimos agradavam: o do almíscar era um deles. O poeta criticou uma mulher que o seduzira apesar de lavar a vagina antes do ato sexual, maldizendo as que queriam ser “lavandeiras do seu cu”. Certa carga de erotismo dependia do equilíbrio entre odor e abluções, embora houvesse muitos, como o Boca do Inferno, que preferissem o sexo feminino recendendo a “olha” e sabendo a “sainete”; “Lavai-vos, minha Babu, cada vez que vós quiserdes”, cantava o poeta, “já que aqui são as mulheres lavandeiras do seu cu”.

Nota: Gregório de Matos - Desbocado, instigante, cômico, devastador, gênio: muito se atribui a Gregório de Matos Guerra (1663?–1699?) e muito se especula sobre ele, como sua personalidade e sua literatura, mas pouco se sabe com exatidão. Do próprio punho conhece-se apenas uma assinatura no livro de matrícula do curso de Direito Canônico na Universidade de Coimbra, em Portugal. Com uma acidez satírica descomunal, a extensa obra pela qual recebe crédito carrega uma genialidade tão arrebatadora que fez nascer uma lenda literária: Boca do Inferno. Este mito do barroco brasileiro recebeu, dos críticos e historiadores românticos do século XIX, roupagem de positivista, determinista, racista, neovanguardista e tropicalista, além de protonacionalista e obsceno. Para desmistificar essa interpretação e fazer uma análise profunda e moderna dos seus textos, dois dos maiores especialistas em literaturas luso-brasileiras, João Adolfo Hansen, da USP, e Marcello Moreira, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, reuniram o Códice Asensio-Cunha com os textos do autor (ou autores) na coleção Gregório de Matos: Poemas atribuídos – Códice Asensio-Cunha, lançamento da Autêntica Editora, com apoio da Capes-Proex. São cinco volumes – o quinto é voltado exclusivamente à análise da obra de Gregório, com comentários e elucidações pertinentes e necessárias – que totalizam mais de 2.400 páginas.


BANHO TERAPÊUTICO

O cheiro de almíscar ainda agradava por estes lados do Atlântico onde o bidê só aportou no século XIX. Mas como lavar o corpo, e com o que? Um pedaço de sabão era um bem inestimável. Que o diga certo Baltasar Dias, em 1618, ao ver que fora roubado do seu, transportado com dificuldade na caravela que o trazia da cidade do Porto para Pernambuco, deu de “dizer palavras de cólera e que o Diabo o levasse de seu corpo”, numa explosão de rara fúria. Conclusão: Foi denunciado à Inquisição por blasfêmia.

Banhos, só em caso de doença. Dom João VI seria o melhor exemplo. Contam biógrafos que, picado por um carrapato na fazenda de Santa Cruz, onde passava o verão, teve a perna inflamada e muita febre. Os médicos lhe recomendaram banho de mar. O rei tinha pavor de ser atacado por peixes ou crustáceos e, por isso, mandou construir uma caixa de madeira, dentro da qual era mergulhado nas águas da praia do Caju, nas proximidades do Palácio de São Cristóvão. A caixa era uma banheira portátil, com dois varões transversais e furos laterais por onde a água do mar podia entrar.

O uso de caixas para banhos era conhecido das cidades europeias, cortadas por rios. Esses mergulhos improvisados na praia do Caju, a conselho médico, são a única notícia que se tem de um banho de dom João nos 13 anos em que permaneceu no Brasil. Ao que tudo indica, o banho de imersão era coisa de estrangeiros no século 18. Coisa de “gosto inglês”, como comentou Juan Francisco de Aguirre, ao observar que apenas nas chácaras sob influência estrangeira se contava surpreendentemente com “lugares para banhos com abundância de água”.

Passadas décadas, Luccock complementou que as abluções não eram “nada apreciadas pelos homens. Os pés são geralmente a parte mais limpa das pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas, que, todos eles andam muito expostos em ambos os sexos, raramente recebem a benção de uma lavada”.

Tanto padres quanto médicos espalhavam por toda a população a crença de que a água, especialmente quente, enfraquecia os músculos e reduzia as habilidades motoras, causando doenças. Ruim para os olhos, os dentes, o rosto, a água os tornaria, também, mais vulneráveis ​​ao frio. Eles também diziam que um pouco de sujeira sempre ajudava a combater futuras doenças. Até a rainha Isabel de Castela se vangloriava de ter tomado banho apenas duas vezes em toda sua vida. Um deles, foi num dia antes de seu casamento, pois era essa a tradição palaciana. Assim, a classe alta cheirava tão mal quanto a classe baixa. Os famosos vestidos e perucas eram raramente lavados e era comum a disseminação de lêndeas e piolhos. Às vezes, eles usavam pedaços de bacon para atrair os bichos para eles. Eles tinham servos eram responsáveis ​​por sua desparasitação diária, mesmo nas partes pudendas.

As patres íntimas não eram lavadas com frequência. Elas poderiam passar anos e anos até que um pingo de água tocasse sua superfície. Médicos proibiam que se lavasse as crianças. Eles diziam que a água os deixaria moles e propensos à doença. Com pânico da morte, as mães não os lavavam, e, desta forma, a mortalidade era muito elevada, pois as feridas, por exemplo, infectavam-se muito rapidamente. Levou-se vários séculos até que as pessoas aceitassem o banho como algo necessário. No século XVII, popularizou-se o “banho anual”, que consistia em banhar-se uma vez por ano, em uma banheira de água quente.

Com a modernidade, no século XIX, o banhos tornaram-se mais comuns entre os homens, que se banhavam mais vezes por ano, até se acostumarem a se banhar até duas vezes por semana. As mulheres não o faziam com tanta frequência e, especialmente, não lavavam suas partes íntimas, porque se pensava que isso as tornaria inférteis. Curiosamente, as épocas anteriores à Idade Média foram muito mais higiênicas. Os romanos e os gregos banhavam-se diariamente, e cortavam os cabelos e faziam a barba com frequência. Em meados do século V, tudo isso foi perdido e os hábitos de higiene regrediram em mais de mil anos.


URINA E VINAGRE

A sujeira causava doenças de pele. Em sua correspondência com familiares em Portugal, o vice-rei marquês do Lavradio se vangloriava da saúde, acrescentando que “conserva-se bem sem sarnas, nem perebas, moléstia de que aqui padecem todos, e só não tenho escapado aos bichinhos do pé, porque estes me têm perseguido barbaramente”. De origem latino-americana, essa espécie de pulga ganhou nomes populares: zunja, xiquexique, jatecuba.

Habituado à pele mais fina e tenra entre os dedos, era encontrado em currais, chiqueiros e praias. O mercenário alemão Carl Seidler foi uma das vítimas desses “imundos hóspedes”: “Ainda me lembro bem que havia soldados que extraíam de trinta a quarenta saquinhos desse bicho, cheio de ovos, cada um dos quais saquinhos deixava um buraco do tamanho de uma ervilha, extração muito dolorosa, e já no dia seguinte número igual se alojara, notadamente nas unhas e nos calcanhares. Para evitar isso, muitos de nós limitávamos a abrir o saquinho cheio daquela criatura do diabo e lhe deitávamos em cima um pouco de mercúrio”.


ROUPA LIMPA

O mau cheiro dos produtos de limpeza não impedia, contudo, que se tomassem certos cuidados. Contou-nos Debret, em 1816: “As lavadeiras brasileiras, aliás muito mais cuidadosas do que as nossas, têm a vaidade de entregar a roupa não somente bem-passada e arranjada em ordem, dentro de uma cesta, mas ainda perfumada com flores odoríficas”. Asseio não era se lavar, mas vestir roupa limpa. Para combater o mau cheiro das vestes, usava-se a bolsa escrotal do jacaré. “Melhor do que qualquer animal almiscareiro”, recomendava Knivet ou ainda Gandavo: “Qualquer roupa a que chegam os testículos, o cheiro fica pegado por muitos dias”. Mas roupa limpa todos os dias? No caso dos padres jesuítas, a resposta seria não. Só trocavam de camisa às quartas-feiras e aos sábados. Maus modos também eram notados. Defecar e urinar em público, expondo as partes íntimas, chocava os viajantes. Que o diga John Barrow, que registrou o hábito de as mulheres urinarem “descaradamente” nas ruas do Rio.

M. de la Flotte, em 1759, também estranhou que aqueles mesmos que se autodenominavam “fidalgos”, “título que em Lisboa é usado somente pelas pessoas de qualidade”, “andassem malvestidos, e, muitos, na sombra, estendessem a mão para satisfazer as suas necessidades mais elementares”. Mas o exemplo vinha “de cima”. Eduardo Theodor Boesche, contratado como cadete de cavalaria, com quartel na Praia Vermelha, assistiu a uma cena cujo protagonista principal foi o jovem imperador dom Pedro I: “Ao romper do dia chegavam a cavalo dom Pedro e sua consorte, acompanhados de camaristas e generais. Não há talvez no mundo soldado tão entendido como o Imperador no manejo prático e exercício da espingarda. De resto, seus modos são grosseiros, falta-lhe o sentimento das conveniências, pois vi-o uma vez trepar ao muro da fortaleza para satisfazer uma necessidade natural, e nessa atitude altamente indecorosa assistir ao desfile de um batalhão em continência. Tal espetáculo deixou atônitos a todos os soldados alemães, mas o imperial ator conservou inalterável a calma”.
Até as primeiras décadas século 19, “da higiene pública incumbiam-se as águas da chuva, os raios de sol e os diligentes urubus”, resumiu Capistrano de Abreu. As relações com a higiene e o pudor refletem como os processos civilizatórios modelaram gradualmente as sensações corporais, aumentando seu refinamento, desenrolando suas sutilezas. E, na observação da falta delas, nada escapou aos viajantes. Pelo buraco da fechadura, viam os brasileiros ainda bem longe das “boas maneiras”.

Figura: As atividades do Clube de Natação do Rio de Janeiro, em 1890, eram ao mesmo tempo causa e consequência, sinal e protagonista de um conjunto de mudanças em curso na cidade em busca de melhorias e da sua identiadde cultural. Não se tratavam de competições nas mais distantes praias da zona sul, na Enseada de Botafogo, ou da região do Caju-São Cristóvão, mas sim bem no centro, onde já se tornara possível homens e mulheres se apresentarem mais à vontade, expressão de uma vida com menos rigores sociais, mais afeita a um estilo burguês. Um colunista da época, numa de suas palestras, publicadas em O Paiz, encheu a agremiação de elogios, por seus serviços à saúde, segurança e fraternidade, considerando-a como uma clara expressão de que avançavam os costumes da sociedade fluminense. Na imagem, vemos o barracão da agremiação, ao lado do Passeio Público, na fronteira com a praia do Boqueirão do Passeio. Para que se tenha uma ideia, o prédio branco que se situa atrás da sede é do Silogeu Brasileiro, onde hoje está o prédio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em 1897, a agremiação adquiriu embarcações para tomar parte nas competições de remo.137 Há indícios que sugerem que um grupo de remadores do Flamengo, por discordâncias internas, tenha para lá se transferido. Em função dessa nova adesão, em julho do mesmo ano, mudou seu nome para Clube de Natação e Regatas. Em 1898, o Clube promoveu eventos ainda mais organizados, culminando com a comemoração do seu 3º aniversário, em dezembro. Numa “extraordinariamente chic” festa,139 contando com a presença de importantes personagens da sociedade fluminense, do corpo de associados e de representantes de boa parte dos clubes esportivos da cidade, além de grande público, foram realizados quatro páreos, o último chamado de “campeonato”, com saída na ilha de Villegagnon e chegada no barracão da agremiação, um trajeto de 1.500 metros, disputado por seis nadadores; José Guimarães se sagrou vencedor.

Fontes de consulta: 
Histórias da Gente Brasileira, Vol 1,Mary del Priore, 2016.
Da Senzala à Colônia - Emília Viotti da Costa
Liberdade por um Fio. História dos Quilombos no Brasil - João José Reis e Flávio Gomes
Colônia – Histórias da gente brasileira ... Mary del Priore