A Casa da Moeda de Soho e os ensaios dos 960 Réis

A chegada da familia real portuguesa ao Brasil, desconsiderando os aspectos negativos, trouxe consigo um ímpeto que fez com que a principal Colônia de Portugal prosperasse, saindo do seu estado “bárbaro” de “terra de conquista”, passando ao status de Casa da Nobreza metropolitana. Antes da mudança de endereço da Casa Real, Portugal tinha feito muito pouco pelo desenvolvimento do Brasil; a principal preociupação dos governantes era a de investir apenas o necessário para extrair suas riquezas naturais. Assim que El-rei, acompanhado de sua corte, desembarcou no Brasil, escapando das tropas de Napoleão, se deu conta de que a infrastutura necessária ao sustento e instalação da nova sede do reino era precária e que diversas mudanças eram necessárias a fim de hospedar os recém-chegados. Surgiram assim, as primeiras universidades, jornais, e bibliotecas. Estradas e ferrovias foram construídas ou melhoradas, e a infra-estrutura adaptada às necessidades do rei e de sua corte. Como parte destas reformas, o governo idealizou a criação de uma moderna Casa da Moeda, tirando vantagem das últimas tecnologias advindas da cunhagem a vapor, desenvolvida na Inglaterra. Assim, o governo contratou a empresa de Boulton & Watt para construir uma Casa de Cunhagem, completa com equipamentos e tudo que fosse necessário à fabricação de moedas.


BOULTON and WATT

A fábrica de Matthew Boulton, localizada em Soho, na Inglaterra, foi uma das primeiras com linhas de montagem próprias da revoluão industrial. Em parceria com James Watt, iniciada em 1774, melhoraram o design e a prestação do motor a vapor, inicialmente idealizado por James Watt, para que pudesse ser aplicado comercialmente na recém-criada fábrica. A bem da verdade, Boulton & Watt construíram os motores que deram vida a revolução industrial inglesa.   
Durante o último quarto do século XVIII, na Inglaterra, existiam tantas moedas falsas em circulação que a Casa da Moeda inglesa foi obrigada a parar, por alguns anos, a cunhagem das moedas no território. A rudimentar tecnologia de cunhagem facilitava a contrafação, o suficiente para que falsos pudessem ser produzidos em profusão.                                                                        
Matthew Boulton, quem já produzia pequenos artigos em metal em sua fábrica, viu na necessidade de se cunhar moedas, a oportunidade de prosperar, bastando para tanto, investir na melhoria do precário processo de cunhagem existente até então. Assim, fundou a Casa da Moeda de Soho, em 1788, operando sob contrato com o governo de Sua Majestade britânica, cunhando moedas e discos para a Inglaterra e para outros países (incluindo discos de cobre para os EUA e para o Brasil). Com uma produção industrial, mais rápida e menos onerosa, tilizando seu maquinário a vapor, fabricava moedas produzidas sob rígido padrão de qualidade, dificultando a falsificação.


OS ENSAIOS DOS 960 RÉIS

Em julho de 1808, Boulton & watt receberam uma carta do Brasil pedindo informações sobre a construção de uma Casa da Moeda. A carta foi escrita por Manoel Antônio de Paiva, sócio de John Lucena, escolhidos por Chevalier Dom Domingos Antonio de Souza Couttinho para inspecionar as máquinas de Boulton. Souza Couttinho tinha recebido ordens de comprar, em nome do governo brasileiro, e deu carta branca a Paiva e ao seu sócio, para analisar e decidir sobre a compra do maquinário. Na carta, Paiva faz dois pedidos: 
1) A construção de uma casa da moeda completa.
2) Detalhes sobre como recunhar 8 reales espanhois, assim como a Inglaterra tinha feito com os 5 Shillings de 1804.  
Foi em resposta a este segundo pedido que boulton & watt produziram o ensaio de 960 Réis de 1809. Provavelmente, o plano era que o Brasil iria utilizar o maquinário para fazer os recunhos localmente, e os ensaios foram uma demonstração do que seria o resultado final. O ensaio foi gravado por Conrad Heinrich Küchler. 
Küchler nasceu em Flandres por volta de 1740. Chegou à Inglaterra pela primeira vez em Março de 1793, onde foi empregado como gravador da Casa da Moeda de Soho, de propriedade de Matthew Boulton. Era o único artista de Boulton para a idealização do design e abertura de cunhos. Produziu o design de várias moedas, medalhas e tokens, incluindo os Cartwheel penny e pence, e medalhas da batalha de trafalgar, Luis XVI e Maria Antonieta. Tempos depois, deixou a Casa da Moeda, mas contiuou trabalhando poara a empresa de Boulton, até a sua morte, ocorrida em 1810, em Handsworth.
Vista da fábrica de Soho, em Birminghan.

Inglaterra, um Penny 1797 GEOERGE III Cartwheel
Ferdinando IV di Borbone, 1759 -1825. Medalha, ano de fabricação 1799, obra de Conrad Heinrich Kuchler. Æ 53,53 gramas; 48,2 mm;  FERDINAN IV D: G SICILIAR ET HIE REX Busto encouraçado do Rei, à direita. Abaixo do busto C.H.K. (medalhística de origem flamenga).
Luís XVI e Maria Antonieta, com familiares. Medalha, ano de fabricação 1799, obra de Conrad Heinrich Kuchler.



O COLAR DE DROZ

Antes do estabelecimento da Casa da Moeda de Soho, em 1789, a maioria das moedas eram cunhadas com prensas manuais. Seus diâmetros o que dava às peças fabricadas um aspecto rudimentar, presa fácil de contrafatores. Matthew Boulton empregou em sua fábrica, o suiço Jean-Pierre Droz, gravador  dotado de grande habilidade na confecção de matrizes. Foi Droz quem elaborou um colar, ou plateau, que agia como terceiro cunho, e que trabalhava em conjunto com os de anverso e reverso. O colar era usado para que anverso, reverso e serrilha fossem cunhados com o mesmo golpe da prensa de cunhagem, dando ao inteiro conjunto um aspecto uniforme. O bordo podia ser serrilhado, liso, com ou sem legenda. Apesar de inovativo, o colar de Droz não obteve o sucesso almejado; foi modificado por James Lawson em 1790, resultando em um colar de uma única peça, que desta vez passou a funcionar para produção de moedas em larga escala, e não somente para a de ensaios e medalhas. 
Com o uso de colares, cada moeda saía da linha de produção em disco circular, sem defeitos ou alterações no diâmetro; o que não acontecia com as moedas nacionais anteiormente  colocadas em circulação.
    A Casa da Moeda britânica não conseguiu adotar os colares com sucesso como foi feito em Soho. Boulton escreveu em 1789: 
“...eu também ouvi falar de tentativas do uso do colar realizadas nas cunhagens na Torre, mas tiveram tantos problemas e dificuldades no seu uso e manuseio que acredito não tenham cunhado mais do que meia dúzia de peças; e se tal coisa tivesse sido proposta aos moedeiros teriam concluido que custaria, no mínimo, um penny para produzir meio penny”.
Finalmente, o restante dos aparelhos e maquinário, fabricados e utilizados na Casa da Moeda de Soho, foram introduzidos na Casa da Moeda britânica.
O colar de Droz, após se demonstrar não adequado para cunhar grandes quantidades de moedas, permaneceu em uso apenas na Casa da Moeda de Soho, sendo utilizado apenas na fabricação de ensaios e medalhas. O colar modificado de Lawson, adotado por Matthew Boulton e seu time na Casa da moeda de Soho deu origem a nossa cunhagem moderna. 

A máquina de cunhar de Boulton, onde foram fabricados os ensaios dos 960 Réis

Ensaios dos 960 rèis, fabricados na Casa da Moeda de Soho

Nota: O artigo é parte de um inteiro capítulo, dedicado à Casa da Moeda de Soho e às falsas de Birminghan, contido no Livro Completo dos 960 Réis, editado por MBA Editores, em parceria com Bentes Edizioni Numismatiche.