Ruy Barbosa, o pai do dragão

No imaginário da esmagadora maioria dos brasileiros, o  baiano Ruy Barbosa de Oliveira - ou simplesmente Ruy Barbosa - ainda é um herói nacional. Provavelmente sua inteligência fora do comum e sua oratória que por todos fazia-se admirar pelo brilhantismo do emprego da norma culta da língua portuguesa, tenham suplantado seus fracassos. Contudo, a bem da verdade, o que poucos sabem é que durante sua gestão da pasta da Fazenda - de certa forma auxiliado por  Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto - o mais ilustre dos soteropolitanos, defensor da soberania das nações "nanicas" durante a Segunda Conferência de Paz, promovida pelos EUA na Holanda, ocasião em que o brilhantismo de seu discurso lhe conferiu o título de "Águia de Haia", foi o criador da maior bolha especulativa do país, "grembo" (nascedouro) do dragão inflacionário do qual a nação nunca mais conseguiu se libertar.


O início da crise

Com a Lei nº 1.349, cessava a faculdade de emissão do Banco do Brasil, que se transformou num instituto de depósitos, descontos e de empréstimos sobre hipotecas. O mais poderoso determinante da Lei foi a requisição insaciável de recursos, em espécies metálicas, para custeio da Guerra do Paraguai, de que resultou a alienação do Estado de toda a sua reserva metálica.


Em 7 de Maio, com a presença do Imperador Pedro II, foi lançada a pedra fundamental da nova sede da Bolsa do Rio de Janeiro, também financiada pelo Banco do Brasil. O prédio só veio a ser inaugurado em 1906.
A partir do final dos anos 80, o BB passou a destacar-se como instituição de fomento econômico. Para a agricultura, destinou as primeiras linhas de crédito em 1888, utilizadas no recrutamento de imigrantes europeus para assentamento em lavouras de café, então sob o impacto da libertação da mão-de-obra escrava.

Ao assumir o poder, presidindo o Ministério, de 7 de junho de 1889, e ocupando a pasta da Fazenda, o visconde de Ouro Preto alertou sobre a insuficiência dos auxílios prestados à agricultura e resolveu intensificá-los, não somente com o aumento do valor de recursos fornecidos pelo Tesouro, como pela maior disseminação territorial dos financiamentos, empenhando-se em ampliá-los a um número maior de estabelecimentos bancários. Em alguns casos também foram celebrados acordos, estendendo-se empréstimos aos engenhos centrais, indústrias ligadas à agricultura, províncias, municipalidades e empresas de viação, fábricas centrais e outras. Não faltaram críticas, entre as quais de que o governo fugiu ao seu dever de indenizar a lavoura, preferindo oferecer-lhe o auxílio oneroso do crédito.
Para apoiar a agricultura a longo prazo, o Ministério apresentou à Câmara um projeto de concessão de garantia governamental para a fundação de banco de crédito real, pelo qual o governo era autorizado a conceder a garantia de juros de 5% e amortização de letras hipotecárias, emitidas por bancos que se fundassem sob o plano da lei nº 1.237. Aprovado, não chegou a ser discutido no Senado. Outra proposta de reforma bancária foi apresentada na sessão do Senado, de 19 de junho de 1887, pelo senador Teixeira Júnior, visando à reimplantação dos bancos de emissão. Sua ideia central era de que, com base em autorização do Poder Executivo, poderiam emitir bilhetes ao portador e à vista, conversíveis em moeda corrente do Império, os bancos de depósitos e descontos que, em garantia do pagamento desses bilhetes, depositassem na Caixa de Amortização o valor de 90% em apólices da dívida pública interna.
Na esteira desse projeto o governo concedeu facilidades para que se fundasse um banco de grande estatura, denominado Banco Nacional do Brasil, que teve autorização para funcionar em estatutos aprovados pelo decreto nº 10.369, de 28 de Setembro de 1889. Este banco, fundado sob a direção do visconde de Figueiredo, figura de reconhecida competência e prestígio nos meios econômicos, fundiu-se com o Banco Internacional, também criado por ele, e foi lançado com um capital de 90 mil contos de réis. Em 2 de outubro, celebrou-se o contrato para o resgate do papel-moeda entre esse
Banco Nacional e o Tesouro.
O visconde de Ouro Preto tomou a iniciativa de criar no Rio de Janeiro uma câmara de compensação para a “liquidação das operações diárias por meio da permuta ou encontro de cheques, cartas ou letras sem dependência da tradição do numerário”. Com a denominação de Clearing House, funcionou eficientemente, mas foi dissolvida em 1º de Fevereiro de 1889, em consequência de discordância entre seus sócios.
Intensificando as iniciativas na área econômica, Ouro Preto realizou empréstimo interno, na praça do Rio de Janeiro, no valor de 100.000:000$000, a juros de 4% ao ano, o qual, com muito sucesso teve uma cobertura excedente do dobro. Outra operação de crédito de igual êxito foi feita na praça de Londres, representada pela conversão dos títulos da dívida pública externa.
Ao mesmo tempo, crescia na Bolsa a febre de negociações e especulações. Ativou- se o mercado de ações, mediante copiosos lançamentos de novas companhias de comércio e indústria, que logo saíam com o capital elevado ou, se já existente, aumentado. O mesmo fizeram os bancos, já em preparativos para pleitear o poder de emissão.
Iniciava-se, assim, um movimento desastroso, que alimentaria a grande crise que iria eclodir nos primeiros anos do regime republicano, ao final do século.


Lei Áurea

A abolição da escravatura provocou retrocesso nas operações do Banco do Brasil. No período de 1887-1888, caiu o movimento de caixa. A administração, embora sem recusar a assistência creditícia, dirigiu as operações de modo cauteloso, procurando garantir a sua segurança. Caiu o movimento dos descontos, embora aumentasse o das contas correntes com garantia. O resultado inevitável foi a diminuição dos lucros líquidos, que se situaram em 3.889:265$283, ainda assim permitindo a distribuição de um dividendo de 9% e o reforço do fundo de reserva com o valor de 845:150$283. No ano bancário de 1888 a 1889, os lucros líquidos baixaram a 3.551:607$502 e os dividendos foram pagos à razão de 8$000.

MARC FERREZ - Provavelmente a única foto de um navio de escravos, antes de desembarcarem no Brasil. As condições da viagem oceânica eram desumanas. (clique na imagem para ampliar)

Horas depois da assinatura da Lei Áurea, em 1888, que libertou os escravos do Brasil, uma multidão de pessoas reuniu-se em frente ao Paço Imperial para ouvir o discurso da Princesa Isabel. (clique na imagem para ampliar)

Missa campal celebrada em ação de graças pela abolição da escravatura no Brasil, no campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro em 1888. (clique na imagem para ampliar)

Em 1889, a imprensa advertiu que o Banco do Brasil estava se expondo a riscos, pois não era um só banco, mas dois, sob uma só denominação – um hipotecário e agrícola e o outro de depósitos e descontos. Não era possível, argumentava-se, conciliar as exigências dos negócios hipotecários, que eram operações de longo fôlego que reclamavam empates permanentes de capital, com as exigências das operações de descontos e depósitos, que só podiam ser feitas com recursos de pronta mobilização.


A República

No final do Império, os republicanos ainda esperneavam pelas ruas do Rio de Janeiro exigindo o fim da Monarquia. A cada eleição, tentavam atingir seus objetivos mas, invariavelmente, o resultado era sempre o mesmo...o partido republicano não contava com o apoio popular, não conseguindo eleger mais do que 3 deputados.

Enfurecidos, tramaram um golpe contra a Monarquia, usando o ingênuo Deodoro da Fonseca para atingir seu objetivo. Iniciaram a tramóia de um golpe, inventando uma história de que o Visconde de Ouro Preto havia ordenado a prisão de Benjamin Constant e do próprio Deodoro que a essa altura, já era bajulado pela trupe “republicana”.

Quando Deodoro soube da notícia, preferiu acreditar nos novos ardilosos “amigos”, ao invés de subir até Petrópolis para conversar com o amigo imperador. O velho Marechal, com medo de ser “engaiolado” por “Ouro Preto”, se voltou contra o melhor amigo.

Deodoro entrou - a cavalo, diga-se de passagem - no QG do Exército e deu voz de prisão e demissão do cargo ao Visconde de Ouro Preto, sem saber que devido a tudo que estava acontecendo, todos os ministros do imperador já haviam pedido demissão do cargo, em protesto à selvageria dos comandados por Deodoro. Ato contínuo, acreditando estar fazendo um bem ao país, Deodoro gritou: Viva o Imperador !!!

O velho marechal não entendeu que estava sendo usado como “bucha de canhão” para trair o melhor amigo. Nessa época, D. Pedro se encontrava em Petrópolis. Fazia muito calor em Novembro e a família imperial passava o verão na maravilhosa cidade serrana.
Sabendo da demissão em massa dos seus ministros, D. Pedro interrompeu seu descanso e desceu a serra para reunir o Conselho de Estado, no Paço. Ouvindo as razões dos ministros, decidiu aceitar a demissão do Visconde de Ouro Preto e formar um novo ministério.

Temendo que a aproximação entre os dois amigos (Deodoro e o Imperador) fizesse cair por terra os planos de golpe contra a Monarquia, Quintino Bocaiúva e o Barão de Jaceguai armaram um ardil para convencer o ingênuo marechal. Disseram que o novo primeiro-ministro, escolhido pelo imperador, era Gaspar Silveira Martins, inimigo mortal de Deodoro, desde os tempos em que disputaram, inclusive à tapa, uma mulher gaúcha nos pampas.

Os golpistas se apressaram em lavrar uma ata, antes que Deodoro tivesse uma conversa com o amigo e esclarecesse tudo. Na verdade, D. Pedro havia escolhido José Antônio Saraiva para primeiro-ministro. Esse ainda tentou correr até Deodoro para adverti-lo que havia sido enganado pela trupe republicana.

Quando conseguiu conversar com Deodoro, José Saraiva exclamou:

“ -O senhor sabe o que fez ? Tem noção da gravidade do seu ato ? O senhor foi enganado !”

Deodoro havia comunicado a José Saraiva que já havia feito a coisa e que já teria assinado os termos que davam origem ao surgimento e futura instituição das quadrilhas no país. A maçonaria inteira tomou o poder nas mãos e hastearam uma bandeira “puxa-saco” - bem ao estilo americano, onde substituíram as faixas vermelhas e brancas por verdes e amarelas (ver foto abaixo) - no navio que conduziria D. Pedro ao exílio.

Em Novembro, ignorando ou mesmo desrespeitando a Constituição do país, o Exército tomou o poder, estabelecendo a República, que representou um ato de intervencionismo militar, recebido sem resistência pela coletividade e pela cúpula monárquica. O novo governo pôs em prática o regime federal de Estado, dando ao país o nome oficial de República dos Estados Unidos do Brasil, adotou nova bandeira, cópia quase fiel daquela dos EUA da América (figura abaixo), estabeleceu a liberdade de cultos, a separação entre o Estado e a Igreja e o sufrágio universal, e eliminou o Conselho de Estado.

A primeira bandeira do Brasil republicano. Quando Deodoro viu o pavilhão idealizado pelos republicanos, deu um murro na mesa e disse: “ -Essa não...isso eu não vou permitir!” ...  Deodoro ainda tentou "limpar a barra" com o amigo, oferecendo uma montanha de dinheiro a D. Pedro II que se recusou em receber, pedindo apenas para levar seu travesseiro com um punhado de terra do país que tanto amava, para poder ser enterrado com ela. Três anos depois, já sabendo que tinha sido vítima de um ardiloso golpe, o velho marechal entrou numa profunda depressão e acabou morrendo de desgosto ao entender que tinha destruído o melhor amigo e traído o seu país.

Nos primeiro dias Deodoro convocou, também, a Assembléia Constituinte que, reunida, em 15 de novembro de 1890, elaborou, com base num projeto apresentado pelo governo provisório, a nova Constituição, promulgada em 25 de fevereiro de 1891. Por pequena maioria, o Congresso elegeu primeiro presidente da República o marechal Deodoro da Fonseca, que proclamou o novo regime e chefiou o governo provisório. Para vice-presidente foi eleito o marechal Floriano Peixoto, que não era o candidato da preferência de Deodoro.
Os primeiros anos do regime republicano foram de discórdias políticas e difíceis ajustes. O presidente da República chegou a dissolver o Congresso, numa atitude tipicamente ditatorial. Fortes resistências levaram o presidente a renunciar, sendo substituído pelo vice, Floriano Peixoto, que permaneceu no cargo até o fim do mandato, embora devesse, antes, convocar nova eleição.

Na área econômica, a República estreou com a atuação de Ruy Barbosa na pasta da Fazenda. Ele manteve, inicialmente, com prudência, a execução da política financeira conduzida pelo último Ministério imperial. A faculdade de emitir foi concedida a novos bancos e mantidos os compromissos de auxílio à agricultura. Mas, criticando a política agrícola e financeira dos governos anteriores, o novo ministro desencadeou, posteriormente, várias mudanças, até que, em 17 de janeiro de 1890, promoveu a sua reforma financeira, através de quatro decretos que foram baixados no mesmo dia, permitindo que certos bancos emitissem títulos de crédito não cobertos por depósitos em dinheiro. Com essa medida, os bancos passaram a conceder créditos a qualquer empresário que apresentasse um plano para abrir um estabelecimento comercial, industrial ou agrícola. Para financiar o grande volume de créditos, o governo viu-se obrigado a fazer vultosas emissões de moeda, o que provocou acelerada inflação.

O novo ministério: Aristides Lobo, Ministro do Interior; Eduardo Wandenkolk, Ministro da Marinha; Tenente Coronel Benjamin Constant, Ministro da Guerra; Marechal Deodoro da Fonseca, Presidente da República; Quintino Bocaiúva, Ministro dos Negócios Estrangeiros; Demétrio Ribeiro, Ministro da Agricultura; e Ruy Barbosa, Ministro da Fazenda. (clique na imagem para ampliar)

O episódio ficou conhecido na história do país como ENCILHAMENTO, período em que Ruy Barbosa, enauqnto Ministro da Fazenda, permitiu que certos bancos emitissem títulos de crédito não cobertos por depósitos em dinheiro; a maior "bolha especulativa" criada no país, marcando negativamente o período conhecido como republicano. O nome tem origem em uma gíria do turfe, em alusão  a última "demão" aos cavalos de corrida antes de atirá-los à raia da concorrência e forçá-los, ofegantes e em supremos esforços, a pleitearem o prêmio da vitória. Pode ser comparado ao burburinho das arquibancadas dos hipódromos do Rio de Janeiro (eram 4 no total), onde era praticado o esporte preferido na época, em analogia às ações apregoadas nas ruas, quando algum mortal tinha as "cilhas arrochadas" na bolsa, "roendo a corda" quando ficava em apuros causando reboliço nos locais públicos.

Cartaz da campanha de Ruy Barbosa para a presidência da República. Assim como hoje, as palavras pareciam ter mais valor do que as ações. Só assim se justificaria o slogan "...dar voto a Ruy Barbosa é salvar a Pátria".
A multidão que se amontoava diariamente em frente ao Banco União do Comércio (a Bolsa, naquela época). A aglomeração, o burburinho e o nervosismo da população diante da enorme crise criada durante o Encilhamento prosseguia pela Rua Buenos Aires até chegar na Rua 1º de Março. À noite os negócios prosseguiam na Rua do Ouvidor na confeitaria Paschoal, muito tradicional, que por conta disso acabou sendo incorporada à Bolsa como Companhia Confeitaria Nacional e virou sucursal da mesma. Os interesses individuais se sobrepuseram aos interesses de país gerando uma crise sem precedentes. Em lugar do salto de crescimento, houve concentração de renda, rentismo desbragado, aumento geométrico da dívida pública e estagnação da economia. (clique na imagem para ampliar)
Num repente as esperanças de prosperidade e rápida industrialização viraram fumaça. Tudo tornou-se uma nuvem de papel que nada valia. A confiança geral e as expectativas que haviam em torno do novo regime, a República, se esvaíram e os canhões da Armada do Almirante Custódio de Mello troaram sobre a cabeça de Deodoro da Fonseca. O dinheiro dos Rothshild, que aliás nem saiu de Londres (foi usado para tapar o rombo do Encilhamento), o que, seis anos depois, acalmou os ânimos do mercado brasileiro, mas colocou o país no caminho do que viria a ser uma gigantesca dívida externa.

Sobre o episódio que marcou o desencadeamento de uma inflação sem controle e que ainda hoje ecoa na economia do país, Alfredo D´Escragnolle Taunay escreveu:

"Embora de inverno, pungia o sol esperto, um tanto cáustico.

Pouco, porém, lhe importava o calor à multidão que enchia, barulhenta e agitada, todo o trecho final da rua da Alfândega até a de Primeiro de Março, transbordando pelos dois ramos laterais da apertada e torta viela, mais que rua, chamada de Candelária, nos arredores do edifício do Banco do Brasil.

Debalde apitavam impacientes e estrídulos os bondes a pedirem passagem; debalde praguejavam, vociferando insolentes, os carroceiros e manejando a custo no meio do povo os pesados veículos; ninguém quase se abalava para os evitar na compacta massa, que ora se intumescia e oscilava com movimentos isoméricos e combinados, ora de repente se dividia, rareava e se espalhava para ir adiante, logo e logo, formar novos e mais densos agrupamentos.

De vez em quando, neles se abriam sinuosos sulcos, por onde, coleando, se esgueiravam azafamados,
ligeiros e jeitosos, corretores e, sobretudo, zangões, estes em número incalculável, de todas as idades, rubros, banhados em suor, com o chapéu caído sobre a nuca e o lenço em torno do pescoço como babadouro, a gritarem compro, vendo, sem particularizarem o que pretendiam comprar ou vender. “Duzentas Repúblicas”, anunciava um com insistência e esganiçada grita. “Quanto?” “ 83”. “Estão fechadas.” E rápidas se escreviam as notas em pedacinhos de papel ou nos punhos postiços da camisa, cheios já de algarismos, enquanto mil sinais trocados no ar, mal esboçados, simples piscadelas de olho, encetavam grossas negociações ou de todo as concluíam.

Terrível o aperto, completos o acotovelamento e a igualdade; todas as classes da sociedade misturadas, confundidas, enoveladas, senadores, deputados, médicos de nota ou sem clínica, advogados bem reputados ou despretigiosos, magistrados de fama, militares, um mundo de desconhecidos, outros infelizmente demasiado conhecidos; homens vindo de todos os pontos do Brasil, alguns até das velhas bolsas da Europa, espertos, ativos, de modos ora insinuantes, ora imperiosos como que fidalgos deslocados do seu meio habitual, afeitos a todos o negócios, prontos para todas as transações havidas e por haver; gente chegada de fresco dos Estados com a feição ainda tímida e acaipirada de provincianos e gestos de quem mal domina surpresas e medos imensos, outros veteranos já naquele fogo de nova espécie, gabolas, farfalhantes, rindo alto, contando proezas e os mais arriscados lances; políticos de posição, há pouco, afirmada pela cartola solene, sobrecasaca abotoada e ademanes compassados, agora de chapéu mole, paletó saco e maneiras familiares, a correrem, com o sorriso estereotipado das dançarinas, atrás dos possíveis fregueses, em penosa competência com caxeirinhos, verdadeiros meninos atirados em cheio na voragem da bolsa, crianças quase, a levarem, nas pequeninas mãos nervosamente fechadas, grossos maços de notas amarrados
por cordéis brancos em cruz, contos e contos de réis.

Por sobre todos pairava uma ansiedade opressora, deliqüescente, de esperanças e receios, como que fluido indefinível, elétrico, febril, intenso, que, emergindo do seio da multidão, a envolvia em pesada atmosfera com prenúncios e flutuações de temporal certo, inevitável, mas ainda distante, longe, bem longe – a fome do ouro, a sede da riqueza, a sofreguidão do luxo, da posse, do desperdício, da ostentação, do triunfo, tudo isso depressa, muito depressa, de um dia para outro!

Também nos rostos, quase todos alegres e desfeitos em riso, alguns não sombrios mas preocupados e sérios, se expandia uma alacridade contrafeita, reflexo de sentimentos encontrados, a consciência de se estar empenhado até aos olhos num brinquedo, quando não jogo, perigoso, travado de riscos e desastres iminentes, mas atraente, sedutor, irresistível.

Era o Encilhamento, palavra quase genial do povo, adaptada da linguagem característica do esporte local em que se dá a última demão aos cavalos de corrida antes de atirá-los à raia da concorrência e forçá-los, ofegantes e em supremos esforços, a pleitearem o prêmio da vitória. E , quantos, montados por hábeis jóqueis, cuja existência se passa a fazê-los ganhar ou perder à vontade, quantos não tinham de ficar em meio da arena, vencidos, humilhados, arquejantes, o pelo alagado de mortal suor, a curtirem as vergonhas e as angústias da derrota, com as pernas a tremer, o coração a estalar da vertiginosa carreira, para que um único, um só, o mais rápido, o mais feliz, ou o mais bem guiado pela trapaça do cavaleiro, atingisse a meta, e arrebatasse, entre delirantes aclamações, o ambicionado laurel, aproveitado em seus rebotalhos, quando muito, por mais dois ou três companheiros de glória hípica?!

Era o Encilhamento – espécie de redemoinho fatal, de Maelstrom oceânico, abismo insondável, vórtice de indômita possança e invencível empuxo a que iam convergir, em desapoderada carreira, presas, avassaladas, inconscientes no repentino arroubo, as forças vivas do Brasil, representadas por economias quase seculares e de todo tempo cautelosas, hesitantes. Dir-se-ia um desses faróis imensos, deslumbrantes, de encontro a cujos vidros inquebráveis, convexos, se atiram, nas sombras da noite e nos vaivéns da tempestade, grandes e misteriosas aves do oceano, para logo caírem malferidas, moribundas, ou sem vida e fulminadas sobre ásperos rochedos, na base das torres agigantadas.

Por ali rolava bamboleando ou pirueteava nos ares como visão fantástica de voluptuosa acrobacia a Fortuna, levíssima nos movimentos felinos e nas inesperadas cabriolas, mas de aspecto pesadão, à maneira de uma rósea e carnuda barregã de Rubens, toda em gargalhadas, báquica, aos tombos, caprichosa, volúvel, com uma ponta de ebriedade, a oferecer o corpo todo nu, lascivo, os seios empinados e largos, o ventre vasto e roliço, presa enganosamente fácil de quantos, ávidos, tresloucados, a quisessem empolgar e possuir. E a simples possibilidade de lhe merecer por acaso um só dos seus lúbricos sorrisos, quando mais não fosse, retinha naquela áurea paragem, em que se jogava às tontas, inúmeros papalvos e curiosos, de todo alheios a qualquer transação, como quem espera tirar a sorte grande sem comprar bilhetes de loteria.

Gatunos propriamente, batedores de carteira ou apalpadores de algibeira, poucos, bastante raros. Assinalado o dia em que se ouvia o brado angustioso de “ Pega ladrão!” “ Lá se foi o meu relógio” e, ao trilar dos apitos, acudiam com grande espalhafato, e logo de chanfalho em punho, soldados de polícia, aliás sem resultado para a garantia da propriedade em perigo e reconquista dos bens surripiados.

Tomava todos os visos de honesto labor o trabalho que se operava naquele atrito de interesses e ambições, por enquanto simpático, quase cordial e bonachão; e, pela imprensa, já haviam vozes autorizadas reclamado do honrado presidente da intendência a formal proibição do trânsito de carroças, caminhões e outros veículos por aqueles quarteirões. Deviam ficar, sem reserva ,destinadas à atividade e à faina, tão úteis ao incremento do país, dos cidadãos entregues às múltiplas especulações da bolsa, às exigências da fecunda jogatina e às contínuas incorporações de bancos, empresas e companhias, cujos pomposos prospectos diariamente enchiam, quase de princípio a fim, os jornais mais lidos e procurados da Capital Federal.

Do alto descia, senão bem às claras o exemplo, pelo menos o incitamento. O governo, na entontecedora ânsia de tudo destruir, tudo derrubar, metido nos escombros da demolição, coberto de caliça e de poeira, anelante de glórias da reconstrução no menor prazo, às carreiras, sem demora, olhando pouco para a natureza e qualidade dos elementos e materiais de que se ia servindo, visando efeitos imediatos, como que esquecido do futuro e do rigor da lógica, a amontoar premissas de que deviam fatalmente decorrer as mais perigosas conseqüências, o governo, com a faca e o queijo na mão promulgava decretos sobre decretos, expedia avisos e mais avisos, concessões de todas as espécies, garantias de juros, subvenções, privilégios, favores sem fim, sem conta, sem nexo, sem plano, e daí outros tantos contrachoques na bolsa, poderosíssima pilha transbordando de eletricidade e letal pujança, madeiros enormes, impregnados de resina, prontos para chamejarem, atirados à fogueira imensa, colossal!

Pululavam os bancos de emissão e quase diariamente se viam na circulação monetária notas de todos os tipos, algumas novinhas, faceiras, artísticas, com figuras de bonitas mulheres e símbolos elegantes, outras sarapintadas às pressas, emplastradas de largos e nojentos borrões.

Quanto aos lastros em libras esterlinas e apólices da dívida pública, fazia-se vista gorda.

Contratos de imigração a dar com o pau, localização de milhares e milhares de famílias européias em todas as terras devolutas imagináveis, um nunca acabar, metade da Europa puxada a reboque para aqui, sem estorvo, nem dificuldade, que não fossem superadas. Bastava singela petição de qualquer, já rico, já pobre, barão assinalado ou mais que modesto incógnito; sobretudo, porém, parentes, amigos, aduladores e apaniguados do momento.
O deferimento não se fazia esperar; nem havia mãos a medir. Requerimentos rabiscados sobre a perna, no intervalo de ruidosas palestras, entre duas fumaças de perfumado havana nos gabinetes ministeriais,s em indicação certa dos lugares, tudo no ar, às cegas, às cabeçadas, e logo transferido por bom dinheiro, centenas, senão milhares de contos de réis a companhias que, da noite para o dia surgiam como irisados e radiantes cogumelos após chuvas e enxurradas, vivificados os incontáveis micróbios da podridão e dos esterquilíneos.

Travava-se a responsabilidade do país em somas pavorosas e brincava-se com o crédito, o nome e o porvir da nação.

Pelo empenho dos corrilhos, pelas manobras da advocacia administrativa desbragada e impudente, viam-se atendidas as mais escandalosas reclamações, mil vezes indeferidas e enterradas nos escaninhos escuros dos arquivos; e indenizações que bradavam aos céus, abriam nos flancos do tesouro público verdadeiras brechas, que não sangrias, a cada momento aventadas pelos caprichos do ditador...Só o estilete de Tácito ou o látego de Juvenal...

Parecia indeclinável acabar de uma vez com todas as antigas práticas, transformar, quanto antes, as velhas tendências brasileiras de acautelada morosidade e paciente procrastinação. Ao amanhã de todo o sempre, substituíra-se o e ! Quanto moroso, senão estéril no natural egoísmo, o pesado trabalho da terra, com os seus hábitos arraigados, rotineiros! A indústria, sim, eis o legítimo escopo de um grande povo moderno e que tem de aproveitar todas as lições da experiência e da civilização; a indústria, democrática nos seus intuitos, célebre nos resultados, a fazer a felicidade dos operários, a valorizar e tresdobrar os capitais dos plutocratas, sempre em avanço e a progredir, tipo da verdadeira energia americana e a desbancar, com os seus inúmeros maquinismos, que dispensariam quase todo auxílio braçal, tudo quanto pudesse haver de melhor e mais aperfeiçoado nos mercados estrangeiros!

Tinha então a ironia patriótica sorrisos de inexcedível desprezo pelas idéias de outrora – esse outrora de ano e meio no mais e já tão afastado, tão distante! Que carrancismo, quanto atraso! Por ventura não era tão simples correr sem parar ,até perder o fôlego? Que melhor política do que sacar sobre o futuro, sacar sempre, a mais e mais com todo desembaraço? Não é tão largo, tão extenso o futuro? Um país com tantos recursos! De que ter medo? O câmbio? Ah! o eterno espantalho das épocas idas, ocultas, já nas dobras do esquecido passado, omnioso passado – diziam alguns, muitos até.

O câmbio? Que importava? Fosse por aí abaixo, rodasse quanto quisesse, a 14, a 12, a 10, a 9... Melhor, não emigrariam os capitais, ficando a girar dentro do país, a enriquecê-lo, a fomentá-lo como generoso sangue, que por toda parte infundisse vida, saúde e robustez. Até os mais longínquos pontos do abandonado Mato Grosso iam desde logo partilhar dos bens da inesgotável cornucópia a entornar-se.

Cidades aniquiladas, mortas, nos últimos confins, surgiriam das tristes ruínas louçãs e garridas, como que tocadas pela varinha da bondosa fada, e em pouco tornariam aos dias de grandeza e opulência, nos tempos das fabulosas minas de ouro nativo de 24 quilates e à flor do chão!...

Então, que dizer do Rio de Janeiro? Ruas e até simples quarteirões viam constituírem-se companhias para transfigurá-los de momento em avenidas de suprema elegância, com todos os requintes do mais exigente policiamento.

As ciências, letras e artes, a educação da mocidade com tontinas, seguros de vida e loterias, tudo era motivo para valentes organizações sociais. E numerosas diretorias, largamente retribuídas, jurando aos seus deuses e batendo de entusiasmo nos peitos, prometiam fazer deste país uma nação excepcional em todo o orbe, graças aos simples influxos destas duas palavras escritas com letras verdes – a cor simbólica dos formosos ideais – ORDEM E PROGRESSO.

Por que razão pedir e pagar um sem número de produtos à interesseira e avara Europa, até perfumes!
quando de tudo aqui se tinha em profusão inacreditável?! Tanta matéria prima à mão, e, entretanto, malbaratada, perdida, a apodrecer, como se fora no centro da bárbara e desconfiada Ásia ou da negra e boçal África! Importar seda, chá, vinho, trigo, linho e mil artefatos! Que inconsideração! E que faziam Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, todos os climas do mundo incluídos dentro do Brasil vastíssimo, interminável? Só se carecia de uma coisa: iniciativa, espírito de associação. A todo transe, urgia apelar, reunir, mobilizar capitais, acordá-los, sacudi-los, tangêlos e, sem detença, nem vacilação, obrigá-los a frutificar – antes do mais em proveito de quantos se propunham, ousados e patriotas ( era essa a nota do dia!), a agitar e vencer o torpor das economias amontoadas, apáticas, imprimindo-lhes elasticidade e vibração.

Para acudir a hipotéticos compromissos, formavam-se, em vésperas de incorporações, sindicatos, cujos membros camarariamente e com toda paz de consciência entre si repartiam as primeiras e avultadas contribuições dos acionistas pressurosos, confiantes, hipnotizados. E na caixa coletora e abarrotada de dinheiro, cada qual por seu turno mergulhava até aos ombros os compridos e impacientes braços, explorando a gosto esses novos e comodíssimos placers californianos.

Dias depois, mais cinco, mais dez ou vinte espalhafatosas carruagens, puxadas por éguas ou cavalos de todos os tamanhos e pelos, alguns mosqueados como onça pintada, todos a bateram com grande estrépito as patas, iam alinhar-se, guiadas por cocheiros graves, tensos, gordos, à inglesa, nas fileiras duplas e tríplices que tomavam de lado a lado o largo de São Franciscox de Paula, atestando ao bom do José Bonifácio, imóvel, brônzeo, com o seu eterno gesto de afetação acadêmica, a expansão instantânea e estupefaciente do seu querido Brasil.

Quanto ao povo, à gente que ainda andava a pé, ao cisco, como então se dizia, esse, contemplava tudo, atônito, boquiaberto, um tanto assustadiço e sempre bestializado, na frase que ficou célebre."