É possível viver da numismatica?

Flexibilidade, a palavra de ordem na economia globalizada, muitas vezes direcionada ao mercado de trabalho, dirigida principalmente aos jovens, mas não somente. Em teoria, uma palavra que nos faz imaginar cenários de amplo otimismo em relação ao futuro, com trabalhadores que migram, com relativa facilidade, de um setor a outro da economia, reciclando performances, atributos e especializações, ampliando competências, até mesmo por mais de uma vez, no curso de uma inteira vida de profissão, adaptando-se em modo indolor à uma realidade em evolução, onde conquistar um posto fixo muitas vezes se assemelha a visão de uma miragem no deserto.

Uma palavra que, muito pelo contrário, na prática esconde uma inevitável dificuldade ligada a inúmeras variáveis tais como, a quase impossibilidade de reciclar seus conhecimentos a fim de migrar para outro setor, ou o medo de transmigrar, mesmo sabendo que isso representaria um salto de qualidade na vida profissional, com mais oportunidades, desejos satisfeitos, prazer no que se faz, acesso à estabilidade financeira, etc. É assim que entusiasmo se transforma em sentimento de impotência, e desejo em frustração. A situação econômica nacional e mundial não deixa perguntas sem respostas, ou pelo menos nos faz antever um futuro um tanto sombrio no que diz respeito ao mercado de trabalho futuro. Basta entender que a outra palavra, crescimento, é tão somente uma curva exponencial. Como imaginar uma sociedade que cresce numa espécie de moto contínuo, sem que, antes ou depois, tudo vá por água abaixo?

Ser dono do seu próprio negócio

Ter um negócio e andar na linha não parece uma tarefa simples no Brasil. Uma pesquisa feita pela organização global Endeavor, chamada “Burocracia no Ciclo de Vida das Empresas”, mostra que 86% das empresas brasileiras atuam irregularmente. Na maioria dos casos são pendências no pagamento de impostos ou no cumprimento de exigências feitos por órgãos como a Receita Federal, Caixa Econômica e Prefeituras.
De um universo de 2550 estabelecimentos consultados em todo o País, o comércio e a indústria são os setores que mais apresentam problemas. Como consequência, perdem oportunidades de negócios - não podem participar de licitações, por exemplo - e ficam impedidos de obter empréstimos bancários.
Um dos responsáveis pela pesquisa, o economista Guilherme Fowler, destaca ainda a queda na produtividade e menor geração de renda para o trabalhador.
No Brasil as empresas gastam em média, por ano, 2032 horas para lidar com questões burocráticas de pagamento de impostos. Uma empresa que está gastando mais tempo em lidar com questões burocráticas e menos tempo produzindo e gerando valor, ela reduz o seu potencial de geração de valor e corta a criação de empregos. Não consegue crescer de forma mais acelerada”, avalia o economista.
O levantamento mostra também a dificuldade para fechar uma empresa no país. Dos 20 milhões e meio de CNPJs existentes, 18%, ou quase 4 milhões, apresentam baixo nível de atividade. Na prática, são micro, pequenas e médias empresas que não conseguem encerrar a atividade por alguma dívida com os órgãos públicos.



A difícil decisão de mudar de lado

Recentemente recebemos um e-mail de um leitor com o texto que se segue (por respeito à sua privacidade manteremos no anonimato a sua identidade):

''Prezados senhores.

Tenho 38 anos e sou um apaixonado incondicional da numismática que abracei como hobby ainda na adolescência, dedicando meus estudos e minha pequena coleção, em particular, às moedas de prata do Brasil pré-republicano.
O motivo pelo qual resolvi escrever aos senhores, resulta de um sonho que, há algum tempo, venho pensando em concretizar. Atualmente estou empregado em uma grande fábrica, trabalhando em setor especializado, profissão para a qual me preparei convenientemente como técnico, cursando escolas que me qualificaram a trabalhar como profissional de metalurgia, o que já faço há quase 20 anos.

Todavia, o tempo passou e com ele, minhas aspirações e desejos mais íntimos que hoje me impulsionam a deixar o setor onde trabalho para me dedicar inteiramente à numismática. Assim, gostaria de saber a opinião dos senhores a respeito e, se possível, obter uma dica ou orientação para saber o que deveria fazer para, por exemplo, trabalhar em um museu, no setor dedicado às moedas de coleção ou numa autarquia que me desse a possibilidade de estar sempre próximo daquilo que tanto amo.

Sei que minha idade pode ser um empecilho, pois acredito ter decidido tarde por algo que realmente poderia me satisfazer em termos de profissão. As necessidades da vida cotidiana sempre me induziram a procurar a estrada mais simples para o meu sustento e da minha família o que é bom por um lado, mas me deixa completamente frustrado no que diz respeito à minha satisfação pessoal. Talvez eu não tenha mais esperança em alcançar meu objetivo de vida, por isso gostaria de ouvir a opinião, otimista ou pessimista, de pessoas envolvidas nesse fascinante mercado, de forma a poder me animar e sustentar meu projeto de vida, algo que habita meu coração desde garoto, uma paixão que, seja lá como for, continuarei a seguir com vigor e empenho pelo resto dos meus dias, independente de se terei ou não a oportunidade de trabalhar no maravilhoso e imortal mundo dos que se dedicam às moedas e à sua história.''

A nossa resposta se encontra após as imagens.

World Money Fair - Um dos salões de comercialização
Aspecto da entrada da World Money Fair
World Money Fair - Recepção aos visitantes
Worl Money Fair - Um dos salões de comercialização - primeiro dia
Worl Money Fair - Disputa acirrada na entrada
World Money Fair - Fila de entrada da feira em Berlin
Aspecto de mesa de comercialização na World Money Fair Berlin 2015



A pergunta que fazemos é: Como responder a uma carta dessa natureza?

Meditamos - ou melhor, meditei - longamente, em particular eu que escrevo esse artigo, debruçado sobre estas palavras, a fim de dar uma resposta que pudesse, de alguma forma, exaurir essa ambiguidade de anverso e reverso.

Indubitavelmente me dá um prazer imenso conhecer pessoas tão genuinamente apaixonadas pela numismática, a ponto de considerar a hipótese de colocar em xeque a própria profissão para a qual se preparou, vislumbrando uma radical - e por que não dizer, diametral - mudança de vida para dedicar-se, em tudo e por tudo, ao fascinante mundo das moedas - usando as próprias palavras de quem nos escreve - objeto do nosso amado hobby e, diga-se de passagem, ciência como são todas as outras, frutos das aspirações do intelecto humano.

Loja da Stack's & Bower's em Nova York.

Todavia, frequentemente, na numismática brasileira nos deparamos com uma barreira quase insuperável, quando imaginamos a nossa numária como objeto de estudo e interesse de museus e universidades. Para tanto basta consultar os anais acadêmicos e constatar que inexistem profissionais dedicados à pesquisa da numismática como ciência e/ou como ferramenta auxiliar no estudo da nossa própria história. Pode parecer um descaso absurdo, mas infelizmente é assim que as coisas se mostram na cultura brasileira que ultimamente parece não interessar nem mesmo às escolas que vem, a cada ano que passa, mais e mais, negligenciando com as tradições e a história do país, dando lugar a ''ensinamentos'' questionáveis e equivocados.

Nenhuma cadeira especializada, nenhuma faculdade dedicada ao assunto, nem mesmo a nível de curso extra-curricular, nenhum sustento do governo, zero em matéria de fundos para um setor tão enraizado com a nossa história. Nenhum apoio à exposições, eventos numismáticos e quase nada para outros setores da cultura. A filatelia brasileira, por exemplo, passa por uma das suas maiores crises, o que pode ser considerado um desestímulo para tantos que se dedicam ao estudo e colecionismo dos selos brasileiros. 
Catálogos e publicações didáticas, só mesmo com o esforço quase sobre-humano de alguns poucos altruistas, homens e mulheres (são poucas, mas existem) apaixonados e que, dedicando uma inteira vida ao assunto, formam um grupo seleto, destacado no cenário atual do que hoje é a nossa numismática.

Para os ''heróis'' autodidatas como foram Julius Meili, Souza Lobo, Kurt Prober, estudiosos que se empenham com afinco e determinação em sondar com profundidade o assunto, mesmo carecendo de publicações de peso que lhes possa dar sustento, o percurso parece mais simples e em crescimento, apesar da ''via crucis'' que a escolha desse caminho possa representar. Não é frequente, é verdade, que um museu ou fundação se apóie em trabalho sistemático de pessoal fora do seu staff, a menos que se tratem de estudiosos reconhecidos, inclusive com prestígio no exterior, como foram Kurt Prober e Julius Meili. Estes, em sigilo total, são convidados a estudar, classificar e catalogar inteiras coleções, valendo-se da condição de consultores especializados o que, diga-se de passagem, são pouquíssimos, o que por si só deveria se distinguir em incentivo a que outros se dedicassem ao setor que ainda hoje é um nicho.
Pensar em assumir uma posição estável em um museu ou autarquia, sem um currículo específico que lhe possa dar sustento em termos acadêmicos, eu diria que é improvável e praticamente impossível.

Contudo, aconselhamos ao nosso leitor a não se desencorajar. Mesmo que não consiga, a princípio, transformar-se em um numismata a tempo pleno, a sua paixão - o que se pode notar em sua carta, plena de tanto estusiasmo - poderá lhe permitir dar ao nosso setor uma contribuição inestimável. Nossa mais importante sociedade numismática, a SNB, apesar de não fazer distinções entre seus sócios (se conhecem ou não o assunto com propriedade) e estar mais empenhada em promover o comércio, incluindo o de artigos alheios ao setor, do que dedicar-se à cultura numismática, é um bom início. Mesmo não prestando a devida assistência aos seus associados, principalmente aos novatos, é a única entidade, além da pequena e inexpessiva SNP do Paraná, que pode servir como uma espécie de pequeno farol orientador, em meio ao deserto cultural do nosso país. Assim, aconselhamos sua filiação à uma das sociedades numismáticas existentes no Brasil, o que irá lhe possibilitar ter acesso à biblioteca que, mesmo não sendo o que se espera de entidades quase seculares, contam com alguma literatura e possibilitam algum estudo, mesmo que não seja aprofundado, e a escrever e publicar seus artigos em boletins, fazendo com que seja cada vez mais conhecido no setor.


Infelizmente, a nossa numismática ainda não é tratada como ciência, nem pelas nossas sociedades numismáticas e nem nas escolas e universidades. No Brasil, ser numismata nos coloca mais na condição de ''ajuntadores de moedinhas'' do que de cientistas, uma realidade bem diferente daquela dos países que tratam sua história, a cultura e o conhecimento com o devido respeito e seriedade. Ainda não temos no Brasil, por exemplo, a figura do perito numismático certificado por Tribunal, algo tão comum no EUA e em diversos países da UE. O perito numismático é o profissional habilitado a classificar, emitir certificados de autenticidade e opinar em questões judiciais por solicitação do Tribunal,com a devida autorização e reconhecimento do Estado que lhe outorga o mérito por certificado. Pode também colaborar com revista especializadas no setor, escrevendo artigos, etc.

Contudo, falando francamente, não me sinto à vontade para incentivar alguém a deixar sua profissão, estando comodamente empregado e recebendo um salário que, mesmo não sendo uma fortuna, é o suficiente para manter seu atual padrão de vida e, quiçá, sua família. Pode não parecer, mas para formar o verdadeiro profissional de numismática, o numismatógrafo, são necessários anos a fio de muito estudo e muita dedicação, muito mais do que simplesmente sentar nos bancos de uma faculdade e exibir, ao final do curso, um diploma. Em outras palavras, não depende apenas de ficar debruçado em livros, repetindo o que, por fim, se resume apenas em parca e ineficaz cultura de citação. A numismática é muito mais do que isso; do contrário já teríamos um mercado inflacionado de profissionais, ao invés de um pequeno grupo de colecionadores (muitos sem qualquer preparo científico) e comerciantes. Não é seara em que se possa militar apenas por opção...é muito mais do que isso. Felizmente, o leitor que nos escreve, parece ter bagagem de sobra. Pode não ser o suficiente para mudar diametralmente sua vida, mas não posso negar que é um bom início que lhe permita, não interprender, mas pelo menos elaborar um minucioso plano de passagem de norte a noroeste. 


No Brasil, principalmente, viver de numismática é muito difícil. Nos EUA a coisa é muito mais simples, mas não no nosso país que conta com reduzida, diria até cada vez menor, dimensão, principalmente porque a profissão não regulamentada do numismatógrafo já é um tremendo desestímulo. Mesmo porque, e fica aqui a pergunta no ar, qual instituição de ensino se atreveria a ministrar um inteiro curso superior, dedicado ao assunto, sem a possibilidade, sequer, de conseguir formar seu corpo docente? 

Para os que pretendem se empenhar numa atividade comercial, o principal obstáculo é o de ordem financeira. Montar um significativo estoque de moedas a serem comercializadas, toma tempo e requer altos investimentos. Todavia, se encararmos a atividade comercial pela lógica que nos diz ser este tipo de ''mercadoria'' um patrimônio altamente valorizado, investir não iria gerar ansiedade por sentimento de perda. Para os que pretendem todavia, dedicar-se ao patrimônio público e cultural, sou mais pessimista, principalmente porque o nosso país não possui a tradição numismática como acontece com os EUA e com diversos países da Europa. Nossa mais recente empresa se deu durante as Olimpíadas, no Rio de Janeiro, ocasião em que a numismática foi "assaltada" por aventureiros, oportunistas e por uma turba feroz de ávidos "biscateiros" em busca de uma "graninha extra", comprando e vendendo moedas do Real que representam um ínfimo percentual do universo que é a numismática brasileira. Isso sem mencionar a compra e venda de réplicas e peças falsas, lamentavelmente um "mercado" em larga expansão em um país onde a corrupção parece ser endêmica.

Contudo, o nosso leitor não deve esquecer que já possui os atributos iniciais para dedicar-se a uma profissão invejável, mesmo que seja tremendamente empenhativa - e no caso do Brasil, até desestimulante - podendo atingir patamares cada vez mais elevados, bastando para tanto continuar a nutrir a mesma paixão que o levou a nos escrever.

Verdade seja dita, aos que se dedicam ao setor, este parece jamais conhecer períodos de crise, mesmo que atualmente caminhe aos "trancos e barrancos", talvez devido à instabilidade econômica e financeira, à recessão e à grave crise porque passa o país, principalmente no que diz respeito ao seu cenário político, tempestuoso e imprevisível. Temos exemplos, no Brasil, de comerciantes e estudiosos que nada tem a lamentar com relação aos frutos obtidos na dedicação ao setor. Mesmo não enriquecendo, gozam de algum conforto financeiro que lhes permite alguma tranquilidade num país onde o número de desempregados já ultrapassou a casa dos 15 milhões. 

Vista parcial das instalações da Bentes italiana, em Torino (Turin).

Finalmente, é bom recordar que a paixão do leitor que nos escreve, estará sempre em condições de pagá-lo pelos momentos de desilusão, sacrifício e fadiga por cada dia em que deve se dedicar ao seu próprio sustento nas atribulações do cotidiano da vida moderna de um país turbulento, mergulhado em um cenário onde a economia e o crescimento são incertos. Certamente, quando chega em casa, quando todos pensam no churrasco do fim de semana ou na saída com os amigos, trancar-se em seu aposento para folhear um novo livro ou catálogo, ou para admirar seus exemplares sob uma lente de aumento, já pagam todo seu sacrifício e a desilusão de não poder, pelo menos nesse momento, dedicar-se ao que tanto e verdadeiramente ama.

Para finalizar, obrigado por nos escrever e, assim, nos dar a oportunidade de externar o nosso pensamento a respeito dessa paixão mútua.

O nosso mais profundo respeito e admiração, não só pela sua dedicação à numismática, mas também por tornar público as suas aspirações e desejos mais íntimos, nos escrevendo abertamente, com a alma e o coração.

Seja bem-vindo ao nosso pequeno, conturbado, instável, alcoviteiro, muitas vezes pseudológico, mas seleto círculo.