A França Antártica
Da década de 1550, estendendo-se até aos arredores de 1620 (por mais ou menos 70 anos), a costa brasileira, de leste a nordeste, foi palco de acirrada disputa entre dois poderosos reinos europeus. Decidiam eles, disse Capistrano de Abreu, o Brasil ser luso ou francês. A França jamais aceitou a partilha do mundo e dos mares entre a Espanha e Portugal feita em Tordesilhas com a benção do Papa.
Como assegurou então Francisco I, o rei francês: “ele ignorava o testamento de Adão”. Um grande soldado do reino, Nicolas Durand de Villegagnon, dotado de espírito de aventura e conquista, imaginou instalar em algum lugar do Brasil um refúgio para os perseguidos em França, nessa época cada vez mais atormentada pelas guerras de religião e mergulhada em perseguições de toda ordem. Em 10 de novembro de 1555, Villegagnon fundou o Forte Coligny na baía de Guanabara, na então chamada ilha de Serigipe. Imaginou-o como um ponto de apoio para, pouco depois, estabelecer uma base em terra firme, batizando o empreendimento como a França Antártica.
Trouxe um contingente, aproximado, de 600 pessoas, em grande parte criminosos condenados, para formar uma comunidade de novo tipo. Dois anos depois do desembarque francês, em 1557, em resposta a uma carta que enviou a Calvino em Genebra, desembarcaram os chamados 14 apóstolos, um grupo de pastores calvinistas com missão evangelizadora.
No festivo desembarque que lhes prestou, Villegagnon lhes disse:
“meus filhos, assim como Jesus Cristo nada teve deste mundo para si e tudo fez para nós, assim eu pretendo fazer aqui para todos aqueles que vierem com o mesmo fim que vistes. É minha intenção criar aqui um refugio para os fiéis perseguidos em França, na Espanha ou em qualquer outro pais de além-mar, a fim de que sem temer o rei nem ao imperador, nem quaisquer potentados, possam servir a Deus com pureza conforme a sua vontade.”
Entre os recém chegados encontrava-se Jean de Léry, que mais tarde, retornado à França ao fracassar o experimento, escreveu um dos mais fascinantes relatos dessa experiência frustrada e um dos mais notáveis ensaios etnológicos sobre o Brasil daqueles tempos.
A festa brasileira em Rouen
Como elemento deflagrador do projeto da França Antártica convém mencionar a chamada Festa Brasileira, encenada em Rouen, no dia 1º de outubro de 1550, portanto cinco anos antes do desembarque de Vilegagnon na baia de Guanabara. Os principais investidores do projeto, os armadores e mercadores da próspera cidade normanda, providenciaram uma sensacional montagem de quadros vivos que procuravam reproduzir, em solo francês, a paisagem tropical brasileira e o modo de viver da sua gente. Entre os figurantes encontravam-se 50 índios tupinambás que, misturados a marinheiros fantasiados, simularam um combate entre as duas tribos rivais, a dos tupinambás amigos dos franceses, e a dos tabajaras, aliados dos lusos.
Além do rei Henrique II e sua esposa, a rainha Catarina de Medici, convidados especiais para a festa (apresentada como uma luxuosa “entrada” com recortes vivos das coisas do Novo Mundo), estavam presentes a célebre e infeliz rainha da Escócia Mary Stuart bem como um grande número de representantes diplomáticos europeus.
Moedas francesas à época de Villegagnon, com grande probabilidade de terem sido utilizadas no Brasil durante a ocupação francesa do Forte de Coligny, no Rio de Janeiro. Não pertencem à numária brasileira; foram batidas na França, sem qualquer alusão ao Brasil.
O conflito teológico
Villegagnon, na Guanabara, aliou-se com a chamada Confederação dos Tamoios contando com o apoio dos caciques guerreiros Cunhambebe e Aimberê, inimigos dos lusos que, por sua vez, tiveram ao seu lado os tupiniquins; isso não foi suficiente para o chefe francês manter o controle sobre o seu experimento social. Conflitos internos de ordem teológica - envolvendo as concepções de transubstanciação e a consubstanciação ocorridos depois de uma discussão sobre a presença da água no vinho e a composição do pão - entre os pastores recém-chegados, Villegagnon, um tal Jean Cointa, e os demais, foi uma das razões que contribuíram para pôr a pequena comunidade de auto-exilados franceses a perder.
O calvinismo rígido, puritano extremado, doutrinariamente intolerante, mostrou-se incapaz de adaptar-se à liberalidade tropical, conduzindo ao fracasso a Nova Jerusalém que os protestantes imaginavam poder construir no litoral brasílico. Uma pequena guerra civil deu-se entre os próprios reformistas, reproduzindo naquela belíssima paisagem da Baia da Guanabara os dramas sombrios porque passava a Metrópole francesa (*).
Este adverso clima interno, corroído pelo ódio religioso, facilitou o sucesso da operação da expulsão desencadeada pelo governador-geral Mem de Sá que, partindo de Salvador com duas naus e oito embarcações, tomou o forte de Coligny em 1560.
Para assegurar a saída definitiva dos franceses daquele local estratégico, Estácio de Sá, o sobrinho do governador, fundou a Vila de São Sebastião do Rio de Janeiro no atual Morro do Cão em 1565 (a vila transferiu-se para a parte interior da baia da Guanabara dois anos depois, em 1567, instalando-se no Morro do Castelo). Desta forma durante alguns anos o Brasil, especialmente na região da baia da Guanabara, transformou-se em uma espécie de cabo-de-guerra, disputado à força pelos Perôs (os lusos) e pelos Maír (os franceses).
O assassinato do Almirante Coligny em Paris, seguido da chacina dos seus partidários huguenotes - no massacre conhecido como a Noite de São Bartolomeu, perpetrado em 28 de agosto de 1572 pela Coroa Francesa, a mando da rainha-mãe Catarina de Medici, fervorosa defensora do catolicismo - cancelou definitivamente o plano de reviver uma França Antártica nos trópicos e, indiretamente, contribuiu para a afirmação do Brasil seguir sendo português.
(*) Enquanto que o Catolicismo, herdeiro direto do Império Romano, acostumado ao multiculturalismo e ao ecletismo, mostrou-se mais apto e flexível para lidar com as culturas nativas tropicais, mesmo que se mostrasse chocado com o despudor geral, o Calvinismo, vindo da pequena, fria e provinciana Genebra, cidade de gente branca, mostrou-se incapaz de um convívio tolerante com elas, sendo a matriz espiritual do apartheid na África do Sul, que eles lá implantaram quase que à sua chegada em 1652.
Bibliografia
A História do Brasil - Voltaire Schilling
A História da Civilização - Will Durant
Storia della Francia - Georges Duby