Obsidionais - Terceira parte - Emissões privadas ou oficiais?

Dando continuidade ao nosso artigo sobre as obsidionais, as primeras moedas do Brasil, passamos aos nossos leitores a terceira e última parte do artigo, contendo a nossa conclusão ao final, demonstrando, à margem de quaisquer dúvidas e/ou especulações, que as obsidionais holandesas, batidas no território do Brasil colonial, durante a ocupação flamenga, são moedas regionais de curso legal, emitidas por Estado soberano, e não moedas particulares de iniciativa exclusivamente privada.

Recentemente foi levantada, em blogs e sites de convívio social, uma discussão sobre se as obsidionais holandesas, batidas no Brasil colonial, seriam moedas particulares (não devendo, portanto, constar dos catálogos de moedas e sim de "fichas, medalhas e emissões particulares") ou se seriam efetivamente moedas de curso legal, emitidas por órgão governamental ou autoridade estabelecida naquela região.

A diferença, apesar de sutil, existe! Para "separar o joio do trigo", concluindo de uma ou de outra forma, os argumentos devem ser dispostos com uma lógica concatenação de idéias, necessárias e suficientes a sustentar, com força de argumentos, uma ou outra teoria. Então, vejamos:

Nas duas primeiras partes do nosso artigo (parte I e parte II), acreditamos que o entendimento do que foram as invasões holandesas e a expulsão dos flamengos do território; do que sejam moedas obsidionais; o que foi a GWC, sua missão e seus objetivos, tenha ficado bem claro. Essa "introdução", de caráter didático-informativo, foi necessária para que o leitor possa agir por empatica, entendendo o contexto da época em que foram batidas estas moedas, numa região do território colonial brasileiro do século XVII.

Contudo, os textos das duas primeiras partes não bastam a exaurir o assunto, dando uma resposta conclusiva á questão: "As obsidionais eram meras emissões particulares de uma companhia privada, não devendo constar da nossa numária" ou "são verdadeiramente moedas, batidas por um Estado soberano, de curso legal e, portanto, consideradas peças importantes e integrantes da nossa numismática" ?

Para tanto, devemos iniciar esclarecendo o conceito universal de moeda e suas nuances:

Por moeda entendemos tudo aquilo que vem utilizado como meio de pagamento ou intermediário de escambo (troca) e que possua, caracteristicamente, as seguintes funções:

1. Medida de valor (moeda como unidade de contagem) - Funciona como denominador comum de valores, permite contabilizar ou exprimir numericamente os ativos e os passivos, os haveres e as dívidas. É o padrão de avaliação de todos os bens e serviços colocados no mercado;

2. Intermediação na compra e venda de bens e serviços - É a moeda como instrumento de pagamento;

3. Reserva de valor (a moeda como reserva de valores) - Pode ser acumulada, para ser usada no futuro. Os indivíduos, seja por motivo de transação comercial, segurança ou especulação, preferem acumular dinheiro, à semelhança dos que o guardavam num cofre ou numa botija, para exercer, no futuro, os direitos que a sua posse lhes permita.

Muitos bens ou símbolos possuem as três características enumeradas acima. todavia, apenas a moeda (dinheiro) possui as três conjuntamente.

Além disso, a fim de exercer seu poder satisfatoriamente em uma economia, a moeda (dinheiro) deve ter as seguintes características adicionais:

  • Ter valor estável
  • Ser de difícil falsificação
  • Ser facilmente repartível e transportável
  • Ter um valor padronizado e que possa ser reproduzido de acordo com a necessidade.


Conclui-se que a função principal da moeda é aquela de servir como instrumento de pagamento. Todas as outras funções são: "ou consequência da principal", "ou condição favorável para que esta se desenvolva plena e satisfatoriamente".

Como muito bem escreveu o prêmio Nobel Samuelson: "A moeda, enquanto moeda e não mercadoria, é desejada não pelo seu valor intrínseco, mas por tudo aquilo que permite comprar."

A moeda é, então, o meio pelo qual podemos pagar por bens e serviços.


Vejamos, a seguir, algumas terminologias para o conceito de moeda e seus derivados:

1. Moeda fiduciária: É aquela cujo valor é função da sua aceitação, podendo ser de curso forçado imposto por lei ou determinação de autoridade constituída. Sua emissão é livre de qualquer necessidade de reservas pela autoridade monetária.

2. Moeda lastreada: É um título intimamente ligado à existência de reservas de metais preciosos (principalmente o ouro) pela autoridade monetária (no passado, qualquer pessoa poderia realmente resgatar uma parte desta reservas associada ao papel-moeda). Sua emissão depende exclusivamente da existência de tais reservas em quantidade suficiente para que cada unidade monetária tenha e mantenha a mesma quantidade de ouro associada, o que nem sempre é observado com rigor, gerando os problemas já conhecidos na economia mundial.

3. Os meios de pagamento: São o correspondente ao total de moeda disponível no setor privado não bancário, de liquidez imediata; que pode ser utilizada imediatamente para efetuar transações comerciais.

4. A moeda metálica: No passado (justamente o que trata este artigo), é o objeto metálico fiduciário (vem de fiducia, palavar italiana, de origem latina, que significa confiança), ao portador, emitido por entidade legalmente investida da capacidade de amoedar (Reis, Príncipes, Estados, companhias majestáticas, também ditas privilegiadas) com curso legal e valor liberatório.

5. Cédula bancária: Documento fiduciário, com curso legal e valor liberatório, ao portador, emitida por entidade legalmente investida da capacidade de amoedar ou emitir papel moeda.


Nota I: Fichas e tokens - São emissões particulares que podem ter diversos formatos, inclusive o de moeda, podendo servir como representação de determinada quantia monetária, compensação ou resgate de determinado bem ou serviço. É um conceito introduzido na idade moderna muito atrelado a regionalismos. Tipos de fichas: Fichas de jogo, telefônicas, de atendimento, de estacionamento, etc.

Podem representar um "valor monetário" ?

Resp: Sim!  Você paga no caixa, de um lado do balcão do bar, por exemplo, pega a ficha e entrega do outro lado do balcão para a pessoa que vai recolher a ficha e te entregar o produto que você comprou. Nesse caso a ficha pode ser uma notinha ou um papel que descreve a mercadoria que você comprou. Como esclarecido, é um conceito moderno que inexistia ao tempo das obsidionais holandesas. Não existe nenhum documento da época em que seja citada ou ordenada a fabricação de "ficha" com valor agregado.

Nota II: Medalhas - Não tem valor monetário intrínseco e não podem ser utilizadas como dinheiro.


É inquestionável que para diferenciar, sem deixar margem à dúvidas, a moeda de curso legal e oficial da mera e simples emissão particular, devemos saber quem as emitiu...se uma companhia privada ou se um Estado soberano. Para tanto, é necessário saber quem é quem; mas a questão não é assim tão simples. Isto porque algumas companhias privadas, fora do seu território de origem, eram o próprio Estado. É o que veremos a seguir:


COMPANHIA PRIVILEGIADA, MAJESTÁTICA

As companhias majestáticas, também chamadas de companhias privilegiadas (Geoctoyeerde Compagnie = chartered company), eram companhias privadas, portadoras de carta de concessão de um governo que lhes conferia o direito a certos privilégios comerciais não concedidos às outras companhias. 

Nas colônias administradas por concessão, o poder público não se exercia diretamente através dos orgãos do Estado soberano no território ou em parte dele. Era confiado pelo Estado à sociedades comerciais que o exerciam sob fiscalização do governo. 

Essas companhias se desenvolveram na Europa no início das grandes conquistas coloniais. Geralmente criadas por um grupo de investidores privados, detinham um monopólio de exploração comercial e colonização dos territórios coloniais em nome do governo concedente, com direito aos lucros advindos dessas atividades. Os governos europeus formaram ou encorajaram a criação dessas companhias nacionais para concorrer com as empresas de nações rivais, impondo sua supremacia por serem investidas de um poder constituído. A exemplo, quando um navegador descobria terras em nome de uma nação soberana, o fazia representando o Estado e não a sua empresa privada.

Importantes companhias majestáticas foram as neerlandesas das Índias Orientais (VOC) e das Índias Ocidentais (GWC). A primeira controlou as terras que hoje correspondem à atual Indonésia, e a maior parte do comércio entre aquela região e a Europa. A segunda foi a principal rival da francesa "Compagnie des Îles de l'Amérique" e dos britânicos, que disputavam o domínio das Américas.

No Brasil, durante o período da administração de Nassau, a coroa portuguesa (dispondo de poucos recursos financeiros devido á guerras, conflitos e corrupção) aceitou de bom grado a intervenção holandesa e investimentos na região do atual estado de Pernambuco, em particular em Olinda e no Recife, convivendo pacificamente com os flamengos. As discordâncias e consequentes conflitos, tiveram início a partir do fim da administração de Nassau, com a GWC executando as vultosas dívidas dos senhores de engenho e tentando expandir o seu domínio na região.

Sem muito esforço, é relativamente simples entender que ao bater moeda em solo brasileiro, a GWC estava investida de poder concedido por um Estado soberano, a Holanda, que concedia tal privilégio a esta companhia majestática. Resumindo, não era a GWC que estava batendo moeda no Brasil, mas sim a própria e soberana Holanda.

Em épocas de privação ou conflitos, na ausência de emissões oficiais (falta de dinheiro) as populações lançavam mão de outros meios ou títulos de valor que lhes permitissem desenvolver as normais e cotidianas atividades comerciais. Tais meios podiam ser a moeda estrangeira, ou emissões de companhias privilegiadas (majestáticas), cujo emissor lhes inspirasse confiança. Tal confiança era inquestionável, já que a GWC, em território brasileiro, era uma extensão do próprio Estado holandês.

Além disso, convém recordar que existia uma relação comercial/financeira muito sólida e estável entre a GWC, representando oficialmente o governo flamengo, e a população local. Os vultosos empréstimos concedidos aos senhores de engenho para que continuassem a produção açucareira, era realizado em moeda holandesa, plena e satisfatoriamente aceita na região. As emissões dos flamengos só foram proibidas após a sua expulsão, em 1654, sob coação da coroa portuguesa que ameaçou com a forca quem fosse encontrado em posse destas moedas. Não eram poucas como alguns imaginam e sim milhares. Se apenas algumas chegaram aos nossos dias, tal se deve justamente ao temor da população daquela época que, coagida pela coroa portuguesa, derreteu a maior parte delas.

Ao bater moeda em solo brasileiro com o nome BRASIL, a GWC não era apenas e tão somente uma companhia privada; era o próprio, legítimo e soberano Estado holandês, a potência comercial flamenga.


Alguns exemplos práticos para que o leitor possa compreender de forma mais clara o que foi exposto:

1. Diferentemente do Brasil, em que a Casa da Moeda é uma instituição do próprio governo, sendo administrada por ele, em alguns países não é incomum que o Estado conceda a determinadas empresas o privilégio de emitir moeda sob sua tutela. O fato de serem companhias privadas, não torna estas emissóes particulares. Isso porque ao cunhar moeda, esta companhia está investida de um poder que lhe foi concedido pelo próprio Estado.

2. Em 1913, o Estado brasileiro mandou cunhar na Alemanha uma série de moedas (ver figura abaixo) de curso legal, em prata 900. Esta emissão, apesar de trazer a letra monetária "A" da Casa da Moeda de Berlim, e ter o dístico BRAZIL escrito com Z, não é moeda estrangeira e muito menos particular. Ninguém contesta a afirmação de que estas sejam moedas brasileiras de curso legal.


3. O Vaticano é um pequeno e soberano Estado, encravado no terrítório italiano. A fronteira que separa estes dois Estados soberanos,é muito sutil e quase imperceptível. Contudo, mesmo estando 100% dentro da Itália, quem nasce no Vaticano, tem seu próprio passaporte e sua própria moeda, aceita em todo mundo como euro, moeda da União Européia e não mera emissão privada. Não possuindo uma Casa da Moeda própria, o Vaticano entrega suas emissões a cargo da Casa da Moeda italiana (Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato) que, mesmo sendo oficialmente estrangeira aos olhos do Vaticano, são emissões de curso e valor legal em toda UE.


Moedas regionais

O argumento de que as obsidionais seriam moedas regionais (não nacionais) é inócuo e desprovido de sentido. Não as invalida, absolutamente, como moeda de curso legal. Diversas cunhagens brasileiras são regionais, a exemplo das moedas cunhadas exclusivamente para o Maranhão, a série "J" de D. José, as moedas de cobre, de D. João V, cunhadas para circular em Minas Gerais, as cunhagens para Goiás e Mato Grosso, etc.


Concluindo: As obsidionais, por terem sido batidas em solo brasileiro, durante período de ocupação holandesa, em situação de emergência, com o nome BRASIL, foram oficialmente cunhadas por um Estado soberano, a Holanda, que concedeu a uma empresa de capital misto - a GWC, companhia majestática que, fora do território flamengo, era considerada o próprio Estado holandês -  o privilégio de representá-la.

Dessa forma, coroando tudo que já foi detalhadamente exposto neste artigo dividido em 3 partes, não resta a menor sombra de dúvida que as emissões holandesas em território colonial brasileiro, com a inscrição BRASIL, em ouro, com as datas 1645 e 1646 e a emissão de prata de 1654, são moedas de curso legal, marcas de um poder constituído e soberano, amplamente respaldadas e garantidas pela autoridade holandesa, cujo poder de decisão e emissão regular de numerário foi concedido à GWC que, em solo brasileiro, era considerada o próprio Estado holandês. 

Texto a cargo de Rodrigo Maldonado, perito numismático certificado pelo Tribunal italiano.


Nota do editor: Entendemos perfeitamente que numismatas iniciantes, por ainda desconhecerem a profundidade da ciência numismática, esquecendo que muito antes de ser mera forma de diversão e colecionismo, o nobre hobby é justamente isso, uma ciência, se deixem levar pela empolgação, entusiasmo e exaltação, absorvendo tudo que lhes é passado como "novidade" por neófitos que se passam por estudiosos e entendidos no assunto. Aconselhamos aos que pretendem iniciar na numismática, que a encarem, antes de tudo, como a ciência que é, necessitando de muito estudo, muita leitura, muita pesquisa aprofundada e científica, paciência, sobriedade, seriedade, dedicação e ponderação. Recordando que as novidades são sempre bem-vindas, mas que devem ser tratadas com cautela, com reflexão e com muito cuidado, para não se deixar induzir por equivocadas e leigas afirmações, incorrendo no erro crasso de um pré-julgamento ou conclusão sem fundamento, sem qualquer base científica, sendo apenas o resultado de uma opinião descabida e sem a lógica que aqui apresentamos aos nossos leitores. 

Esperamos que a nossa exposição, com lógica argumentativa - desprovida de emoção, passionalidade e, principalmente parcialidade - tenha sido bastante clara, didática e elucidativa. Desta forma, que tenha ficado claro, de uma vez por todas, que as obsidionais, batidas pela autoridade da soberana Holanda, em território brasileiro, com a inscrição BRASIL são moedas regionais de curso legal e, portanto, inserida como inquestionável peça da nossa numária. Não são emissões privadas como foi equivocadamente defendido por quem desconhece o assunto.

Para quaisquer esclarecimentos, o leitor pode enviar seus questionamentos e dúvidas para o seguinte endereço e-mail: numismatica@hotmail.it

Nota: Só serão respondidas as dúvidas e questionamentos apresentados com argumentação científica, cujo raciocínio tenha sido exposto com método, lógica e organização.

FIM DO ARTIGO