A carta do coronel


O selo conhecido como Olho de Boi foi impresso, por determinação do Governo Imperial, em 1843. O Brasil foi o segundo país no mundo a emitir selos válidos em todo o território nacional (ao contrário das emissões locais), ficando apenas atrás do Reino Unido.

Constitui-se na primeira série de selos postais emitidos pelo país (a segunda do mundo de circulação nacional e a terceira, se for levado em conta o selo emitido no Cantão de Zurique - Suíça, de circulação apenas regional), e consta de três peças com valores gravados de 30, 60 e 90 réis.

De início, houve a discussão sobre a conveniência de se estamparem nos selos a efígie do imperador. As autoridades da época acabaram por concluir que os selos não deveriam trazer o rosto de Dom Pedro II, pois os selos, carimbados, acabariam por vilipendiar a imagem de Sua Majestade. Por esta razão, as primeiras séries de selos postais do Brasil traziam apenas os algarismos de valor na estampa.

A série Olho de Boi circulou entre 1843 e 1844. Os selos de 90 réis eram destinados apenas às correspondências internacionais, o que os tornaria os selos mais raros e disputados por filatelistas na atualidade. O Olho de Boi de 30 Réis deveria ter uma primeira impressão de 6.000.000 unidades, porém sua tiragem final foi de 1.148.994, com remessas para Porto Alegre (31/08), para a província do Espírito Santo (06/09), para São Paulo (14/09) e para Minas Gerais (25/09).
O Olho de Boi de 60 Réis teve como tiragem final 1.502.142 de selos e o de 90 Réis teve 349.182 selos. A Bahia foi a província que recebeu o maior número de selos: 61.000 de 60 Réis; 24.000 de 30 Réis e 18.000 de 90 réis. A série Olho de Boi é uma das mais raras e procuradas por filatelistas de todo o mundo.

Nota: Os filatelistas devem sempre exigir certificado da autenticidade quando comprar selos olho de boi pois existem muitas falsificações no mercado.


A CARTA COM A SÉRIE COMPLETA DOS OLHOS DE BOI

Nas memórias históricas de Guilherme Antonio dos Santos (1871-1966), prestadas quando ele já cumprira 90 anos de idade e publicada na revista “Brasil Filatelico”, constavam algumas peças por ele adquiridas de Alphonse Bruck, cuja casa de negócios filatélicos funcionou no Rio de Janeiro entre 1896 e 1900. O acervo da Casa Filatélica contava com grande variedade de selos e cartas, entre elas uma Carta com a série completa dos olhos de Boi. 

Essa peça pertencera, por um longo tempo, ao Sr. Bejamin Hans Lagerloef, sueco, residente nos USA e conhecido em todo o mundo filatélico como o Coronel Lagerloef.

O Coronel já era um colecionador ativo nos anos de 1920. O Sr. Lagerloef faleceu aos 72 anos, em Maio de 1952, nos USA, após ter conseguido organizar uma das maiores coleções do mundo, contando com mais de 1.200 volumes (álbuns). Quando sentiu aproximar-se o fim começou a vender partes da coleção e a doar outras. Quando faleceu ainda possuía cerca de 900 volumes da coleção. O Museu Postal de Estocolmo tornou-se um dos mais ricos e importantes em acervo filatélico do mundo graças às doações do Sr. Lagerloef. Para se ter uma idéia desse portentoso acervo, em 1952 o Museu Postal de Estocolmo já havia editado oito catálogos das doações do Coronel Lagerloef; em seu ultimo volume descrevia sua 21ª doação, dentre outras, a de uma coleção especializada da Bolívia de quatro volumes e uma da Holanda em três volumes. Entre suas doações constam ainda os dois primeiros selos da Ilhas Maurício, que ele adquirira pelo fabuloso preço, para a época, de US$ 30.000,00. Essas doações obrigaram o Museu Postal de Estocolmo adquirir um novo prédio para abrigá-las.

Em 1936, durante a TIPEX, em Nova York, o Sr. Lagerloef concorreu com coleções de 23 países diferentes e recebeu medalhas em todas elas. Foi a exposição na qual um único expositor mais medalhas ganhou.

A primeira imagem impressa dessa peça pode ser encontrada em 1923 no “Großes Lexikon der Philatelie” – Alexander Bungerz - Munchen, página 88.

Nos anos seguintes dela nada se soube. Até que no ano de 1944 a Imprensa Nacional do Brasil concluiu o Anuário do Museu Imperial de Petrópolis, relativo ao ano de 1942, onde foi publicado um artigo denominado “Centenário dos Primeiros Selos do Brasil” de autoria de Roberto Thut e, entre as páginas 86 e 87, foi encartada a ilustração da referida carta, anotada como Fig. 18, com o seguinte texto explicativo: “Cópia fotostática de uma sobrecarta franqueada com os três valores de ‘olhos-de-boi’, que fazia parte da coleção do falecido Cônsul-Geral Eduard Heinze”.

Como filatelista Heinze foi um dos primeiros grandes colecionadores de selo sobre cartas e foi também um dos primeiros a ter ávido interesse pelos carimbos postais. Foi na verdade o mais importante colecionador de selos da Nicarágua e publicou, em 1935, na Áustria, um pequeno livro sobre os carimbos desse país, que ainda hoje é bastante atual e válido. Dedicou-se também aos selos sobre cartas da antiga Alemanha, Itália, Brasil, México e Lombardo-Veneza. Em 1910 ele mostrou sua completa coleção de selos sobre cartas da antiga Alemanha e Itália. Foi membro da BSV Postdam desde final 1912 e presidente a partir de 1934. Também desde 1912 tornou-se membro da Germania-Ring e correspondente da Sociedade Philatélica de São Paulo (Brasil). Graças  a ele, a grande exposição de selos de Berlin contou com inúmeras peças de sua propriedade. E foi inestimável sua contribuição para as primeiras associações filatélicas surgidas na Alemanha.

“No grande leilão de inverno anual de 1956 dos famosos leiloeiros H.R. Harmer, 4 Olhos de Boi sobre envelope foram vendidos por 310 libras esterlinas. Tratava-se de um 90rs, um par de 60rs e um 30rs com o carimbo “Correio Geral da Corte” e a data de 22.08.1843”. Assim noticiava o Brasil Filatélico nº. 115, à página 34, na coluna Revista das Revistas. A estimativa de valor proposto era entre 200 e 300 libras esterlinas.

A carta voltou a aparecer em Londres, em 1970, durante a então Exposição Internacional PHILYMIA1970. O negociante de selos Wilhelm Bartels, de Dusseldolf, a ofereceu pela importância de 12.000 dólares ao colecionador americano Norman Hubbard, importante expositor de selos Olhos-de-Boi e que naquela exposição mostrava em sua coleção o “Pack Strip”. 

Em 18 de Março de 1975 a casa leiloeira Robson Lowe & Paulo von Gunten realizou um leilão em Basle, Suíça, sob o título de “A Superb Collection of Brazil” e essa peça ali estava inserida sob o lote 1.506 e cujo catálogo assim explicitava: “Notável carta para Santos porteada com 30rs + 60rs (par) + 90rs. Todos da impressão intermediária e com margens, obliterada pelo carimbo ‘Correio Geral da Corte – 22 08 1843’, círculo duplo. Espetacular peça de exposição. Certificado Diena. Estimativa de Sfr 60.000”. O preço alcançado conforme a lista de resultados foi de Sfr. 35.000,00. 

O Sr. Maurino Araújo Ferreira, um dos maiores colecionadores brasileiros de seu tempo, recebeu o catálogo e ficou vivamente interessado em adquirir a peça em oferta. Quando da compra da coleção do Império do Brasil pertencente ao Sr. Ivo Ferreira da Costa, residente em Porto Alegre, no início do ano de 1972, esse colecionador mineiro ajustou um acordo prévio com o comerciante filatélico Sr. Rolf Harald Meyer, radicado em São Paulo, com o objetivo de se evitar disputas comerciais sobre aquela coleção. Ficara combinado que o Xifópago iria ficar com o Sr. Meyer (desejava ele que essa peça retornasse às suas mãos, como ocorrera em 1954) e o resto da coleção ficaria com o Sr. Araújo Ferreira. Efetivada a compra com a visita do Sr. Ferreira a Porto Alegre, o acordo deixou de ser cumprido, pois o Sr. Maurino Ferreira, além de ficar com o Par Xifópago vendeu o material que não desejava para o Sr. Reinaldo Bruno Pracchia e os Meyer “ficaram a ver navios”.

Poucos anos se passaram e em março de 1975 o Sr. Maurino Ferreira, a caminho de Basle para participar do leilão promovido por Robson Lowe, visitou o casal Meyer e solicitou um casaco emprestado para enfrentar o rigoroso frio europeu. Na oportunidade da visita, entre drinks e canapés, explicitou a razão da viagem à Europa. E naquela mesma noite, com o casaco emprestado, embarcou para a Suíça para tentar comprar a carta postada no Rio de Janeiro e destinada a Santos, que era franqueada com os três valores da emissão dos Olhos de Boi.

Maurino não obteve sucesso em comprá-la; fato raro quando participava de leilões internacionais. Para dissipar a amargura da perda, aproveitou para fazer turismo na Europa onde permaneceu por mais uns quinze dias. Cerca de um mês depois da volta, viajou a São Paulo para devolver o casaco que pegara emprestado. Ao entrar na sala de visitas do casal Meyer, lá se quedou estupefato ao ver nas mãos da senhora Lott (esposa do Sr, Meyer), a servir de abano para amainar o calor escaldante, a “Carta dos Três Valores dos Olhos-de-Boi”. Fora comprada pelo telefone e a ela presenteada pelo marido. Era o revide; a resposta dada ao comportamento anterior do Sr. Maurino Ferreira no episódio da compra da coleção do Sr. Ivo Ferreira da Costa.

Anos mais tarde, no final dos anos oitenta, o Sr. Maurino Ferreira mencionou que “ainda àquela data sentia na boca o gosto amargo da frustração e que nunca pagara tão caro por um simples empréstimo de um casaco para o frio”.   

O preço de aquisição foi de SFr. 36.000,00 mais as taxas. Essa notável peça da Filatelia Brasileira ficou nas mãos do casal Meyer, entre 1975 e 2007, onde adquiriu fama e prestígio, passando então a ser conhecida como “The Meyer’s Cover”. Foi exibida no “Club de Mônaco” em 1997. 

Em 2005 o casal Meyer sofreu um assalto em sua casa, em São Paulo, durante o qual o Sr. Meyer foi violentamente agredido. Por essa razão a família Meyer, em 2007, decidiu colocar em leilão todo o material a ele pertencente dos Clássicos do Brasil. A casa leiloeira escolhida foi David Feldman SA, da Suíça.

Em 4 de outubro de 2007 David Feldman ofereceu a Coleção Meyer através de um catálogo exclusivo e inteiramente a cores. Essa peça tomou o número 20103 e estava assim descrita:

“A definitiva carta de Olhos de Boi - conjunto completo (30 réis + par de 60 reis + 90 réis), cada um deles com margens de folhas e mostrando as linhas divisórias – superior ou inferior - dos painéis, Carta amarrada por carimbo limpo e bem batido do Rio de Janeiro, circular duplo datado de 22 de agosto de 1843 (primeiro mês de uso e 21 dias após a emissão). A combinação dos três valores e de posições todas de margens de folhas é estatisticamente “uma em um milhão”. Realmente, esta é a única carta conhecida apresentando os três valores. Todos os selos são das impressões iniciais ou intermediárias; quais sejam: o 30rs da 2ª Chapa Composta, Estado A, posição 17; o 60rs da 2ª Chapa Única, Estado B, posições 2 e 3; o 90rs da 2ª Chapa Composta, Estado A, posição 2. Expertização: assinada por Friedl e acompanha um certificado anterior de A. Diena. A mais antiga carta apresentando o conjunto completo de qualquer lugar nas Américas; uma famosa e especial peça de exposição, indispensável para uma coleção de Grande Prêmio. Estimativa: entre 500.000 a 750.000 Euros”.

Um novo recorde mundial para qualquer peça filatélica da América Latina foi alcançado em leilão público ao ser vendido em sala pela fabulosa soma de E 690’000, equivalente a US$ 972.900,00 + 19,5% de taxas leiloeiras.

Segundo consta no website da empresa David Feldman, o leilão foi iniciado em 500.000 Euros e a disputa foi acirrada entre dois licitantes ao telefone e um terceiro pela internet, sendo arrematada por um dos licitantes ao telefone que falava em francês, mas que solicitou fosse mantido o sigilo de sua identidade.

Artigo adaptado, publicado originalmente na revista MOSAICO, Ano XI, nº 32 - Junho de 2001, órgão de divulgação da Câmara Brasileira de Filatelia - Belo Horizonte - Minas Gerais. Autor do texto original: Paulo Comelli (in memorian). Imagens gentilmente cedidas pelo autor